sábado, 8 de dezembro de 2012

Motivação




Recentemente perguntaram para mim:

- Eder, o que te motiva?

E eu disse:

- Motivação!

A pessoa olhou-me nos olhos e, com aquele ar de quem sabe muito, explicou-me:

- Eder, não se usa a palavra que se está definindo na definição.

Então, simpaticamente, pedi-lhe papel e caneta e escrevi:

"MOTIVA$$ÃO".

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Seção Quadras Singulares:
XIII: A Queda

 A um amigo de letras
ou a algum time também.


No gramado, só um atleta,
 Que clama agora! Reclama!
Sua presença incompleta
É a flâmula que não flamula!

12/11/2012

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Homens de Sorte



Estávamos deitados de conchinha sobre o tapete da sala, assistindo ao novo filme do Tim Burton, Alice, quando Bel, minha mulher, resolveu me contar.

- Estou atrasada.

- Eu sei - disse logo após dar um selinho em sua nuca.

Ela se virou com cuidado e ficou me analisando com aqueles olhinhos castanhos.

- Sabe?... Como?

- Normalmente você compra duas caixinhas de absorventes. Mês passado, quando fomos fazer compras, você só comprou uma; este mês, nenhuma.

- Eu poderia ter comprado numa farmácia...

- Poderia... mas sei que não faz isso.

E era verdade, tínhamos o hábito de fazer quase tudo juntos: se ela cozinhava, eu picava os temperos; se ela colocava a mesa, eu tirava; se ela lavava a louça, eu secava e guardava. Dividíamos as tarefas das mais complexas às mais banais, apenas pela necessidade de ficarmos juntos a maior parte do tempo que realmente nos pertencia. E gostávamos disso.

- Em que esta pensando? - perguntei.

Ela ficou me contemplando por um tempo e disse:

- Semana que vem tenho ginecologista marcado, você pode vir comigo?

- Posso sim.

Ela me deu um beijo e ficamos abraçados em silêncio. E enquanto eu me perdia no cheiro de frutas do perfume de seus cabelos, Alice caia vertiginosamente pela toca do coelho...




... 1 ano, 1 mês e 23 dias antes...



... O jamaicano Usain Bolt, entrava para a história como o velocista mais rápido do mundo. Bolt, que logo  faria 23 anos, fez a marca dos 100 metros em apenas 9,58 segundos - menos de 1 segundo para cada 10 metros percorridos. O mais curioso é que Bolt conseguiu terminar a prova em aproximadamente 41 passos, três a menos que a maior parte de seus oponentes. Especialistas calculam que suas passadas percorram uma distância equivalente a 2,439 metros, fazendo jus ao apelido recebido: "Lightning Bolt"

Três semanas depois, mal sabia ele que quase fora aposentado por um anônimo brasileiro de 32 anos de idade, que jamais havia posto os pés em uma pista de corrida. Se tal homem não contivesse as forças sobrenaturais que se apossaram de todas as fibras em todos os músculos que habitavam todo o seu corpo, Bolt, a esta altura, estaria relegado ao passado, como Carl Lewies, Ben Johnson e outros tantos que já nem nos lembramos.

Eu era capaz de sentir o olhar do público vagar ansiosamente entre a partida e a linha de chegada, como se o juiz fosse dar o sinal sem que ninguém estivesse pronto para a ocasião. Mais ansiosa do que eu, a platéia consultava o relógio a cada dois segundo perguntando-se quando é que a prova, que estava marcada para às 11:00 horas, iria começar, uma vez que já estava 23 minutos atrasada.

Para passar o tempo e me tranquilizar comecei a calcular distâncias e concluí que partindo da chegada até a linha inicial o tempo  era drasticamente reduzido, apesar da distância ser a mesma inversamente...

Uma brisa suave e gélida percorreu o recinto e veio esquecer-se em minha face. A discrepância entre a minha temperatura e a externa fez brotar pequenas gotículas de suor pela minha testa. Tratei de limpá-las antes que virassem rios. Conhecia aquele tipo de brisa, já morara no interior anos atrás. Aquele ventinho sutil que vem como quem não quer nada, trazendo em si o suave e adocicado cheiro de terra molhada era o prenúncio de chuva. Das grandes.

Fechei os olhos e deixei-me absorver pelas imagens: pequenas gotas tornando-se poderosas e densas, arremessando-se furiosamente contra o solo de terra batida, levantando e levando aquele aroma singular para lugares inimagináveis e, tudo isto, chegando até mim feito a Cavalgada das Valquírias...

Mas o que minha mente queria que eu acreditasse ser Wagner, na verdade era Felix Mendelssohn e sua conhecida marcha nupcial composta para Sonho de Uma Noite de Verão.

Subitamente, toda aquela sensação de desconforto e fuga esvaíra-se de mim e, naquele momento, tornei-me o ser humano mais inexorável do mundo. E assim, enquanto Bel adentrava na Paróquia Nossa Senhora do Brasil, conduzida pelo pai, seu Virgílio, lembrei-me de quanto Usain Bolt era um homem de muita sorte.

Mas também me lembrei da minha própria sorte ao ver seu Virgílio, o Jaguadarte que virara meu chapeleiro Maluco no Glorian Day...


... Continua.


01-06/11/2012


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Os 10 Mandamentos
Reloaded



Em face à mordenidade e todas as mudanças que ela acarreta faz-se necessário o rearranjo de velhos conceitos, de modo que eles possam aparentar novas estruturas, para que não padeçam durante a transição de gerações. Desta forma, apresentamos:


Os 10 Mandamentos
Reloaded



1 - Não terás outros deuses diante de Mim.

* Observem a palavra "diante". Esta tem o mesmo valor que "em frente", "perante", "em fronte"; para leitores de esportes é o equivalente  a "na cara do gol", "penalti", etc. Neste caso a interpretação é muito simples: diante de deus, somente deus; se não estiver diante dele pode apelar para o(s) mais próximo(s).





2 - O segundo mandamento é contra a idolatria.

* No texto original (Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás...) é mister reparar que nada se diz sobre as imagens que já estão na terra.

Desta forma pode-se seguir com o fanatismo desenfreado em relação aos Clubes de Futebol. Também serve para os terroristas que se dão ao direito de se explodirem e explodirem outras pessoas, mas ficam indignados se você faz uma piadinha sobre Maomé, então fazem paseata, queimam bandeiras, destroem lojas, e eventualmente se explodem por ai.



3 - O terceiro mandamento é contra dizer o nome de deus em vão.

Esta regra não se aplica nos seguintes casos: 
a) diante de um acidente eminente, pois se trata de invocação: Deeeeeeeeeuuuuuusssssssss!
b) mulher bonita apresentada para homem feio e vice-versa; pois se trata de proteção: Meeeu Deus!
c) penalti, falta ou gol invalidados, pois trata-se de indignação; "Ah... Deus!"
d) durante a abertura do holerit, pois trata-se de consternação. "Puta que pariu! Meu Deus!"



4 - O quarto mandamento é sobre resguardar do sábado.

* A legislação trocou o sábado pelo domingo e prometeu pagar no domingo e feriado 100% de extra sobre o valor já pago normalmente.
  Levando em consideração que deus não se manifestou foi entendido que seu silêncio era de consentimento.
  Portanto, onde se lê sábado, entenda-se domingo.


5 - Honrar pai e mãe.

* Levando em consideração de que ninguém pede para nascer este mandamento deve apresentar reciprocidade. Ou seja, honre os pais, desde que eles façam por merecer.
* Esta regra não se aplica nos seguinte caso:
a) pais que cometam abusos de origens psicológicos,
b) físicos
c) sexuais; e
d) a, b e c juntos.



6 - Não matarás.

* Observe que este mandamento é expresso em seu conceito, não matarás, mas não diz "o que", nem "quando" e menos ainda "em que ocasiões".
* Portanto esta regra não se aplica nos seguintes casos:
a) legitima defesa;
b) animais para consumo;
b) ao tempo;
c) se você for bandido;
d) se você for policial;
e) se você for médico;
f) motorista alcoolizado; e
g) corno



7 - Não adulterarás.

* Este mandamendo, assim como o anterior, é puro, pelo jeito como está; portanto torna-se tão abrangente que se faz impossível observá-lo em sua origem, não sendo indentificável, novamente, não diz "o que", nem "quando" e  menos ainda "em que ocasiões".  Por exemplo, e, conclusivamente, da forma que se encontra torna-se dificil a mistura de dois elementos distintos, pois isto já é adulterar.
* Visto isto, neste caso, solicita-se ao adultero que leve em consideração o grau de periculosidade de suas ações; não deixando, é claro, de observar os itens do mandamento anterior, sobretudo algumas possíveis combinações. (Ex: item c + g, etc).



8 - Não Furtarás.

* Novamente encontramos outro mandamento puro, ou seja, que não determina as circunstâncias; entetanto, ao contrário dos demais solicitamos que se o leitor for pobre e carecer de recursos e apoio jurídico respeite este mandamento a risca.

* Estão isentos deste mandamento: Presidente da República, Deputado - Federal ou Estadual - Governador, Prefeito, Vereador, Acessores Fantasmas e demais cargos elegiveis. Inclui-se também o ilustrissímo Paulo Maluf que é confesso, mas faz.




9 - Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. 

* Observe as palavras "contra" e "próximo"; assim: não dirás falso testemunho contra o teu próximo, que dizer que se não for contra pode e se não for próximo, também pode. Se for para dizer falso testemunho fale a favor e não contra; se for dizer contra, diga do distante e não do próximo. A lei é clara, o texto é que é confuso.



10 - Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.

* Traduzindo: cuida da sua vida que da minha cuido eu.

Embora todos gostemos da lição que se encerra neste mandamento, este mandamento é o mais sem sentido de todos.

Vamos entender o por quê: seu vizinho tem um fusca, eu tenho um fusca, o outro vizinho tem um fusca, e, mais um tem outro fusca, todos iguais e bejes. De repente alguém compra um Audi A4, prateado, com ar condicionado de fábrica...

Não precisa ser gênio para perceber o que acontece? Na dúvida pergunte a um cubano como é viver em Cuba.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Dez aforismos




1 - Na má temática da vida amigo nenhum vale o dobro de um falso amigo.


2 - Se soubesse que a vida seria tão árdua, antes de chegar ao útero de minha mãe teria voltado aos testículos de meu pai.


3 - Paises como a China, as Coreias e o Japão devem ter as melhores polícias periciais que possam existir no mundo, por que se dependerem do retrato falado...


4 - Não é correto afirmar que Beltrano, Cicrano ou Fulano são burros feito portas. A tecnologia tem feito portas mais inteligentes.


5 - A expressão "politicamente correto" é um conceito fadado a piadas. Além de ser feito por palavas que na prática nunca estiveram de mãos dadas, parece que as pessoas se esquecem de que vivemos no Brasil.


6 - A pior coisa que pode acontecer na vida de um homem que busca pela verdade é encontrá-la.


7 - É a vida, e não a morte, que nos mata um pouquinho todos os dias. A morte é apenas o ápice do processo.


8 - Quando a obra é grandiosa, os personagens são maiores que o autor.


9 - Por que a beleza que não temos e somente a que desejamos sem querer alcançá-la, é tamanha fonte de inspiração?


10 - Crianças do mundo: por que cresceis?







 agosto/setembro/outubro de 2012

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Pudim de Pão Velho


6 a 8 pães franceses (mas não como aqueles brancos, decreptos e velhos sem graças que morreram nas guilhotinas durante a Revolução Francesa)


4 ovos inteiros (mas não daqueles provenientes das galinhas que se vendem na Augusta, em Moema ou em Pinheiros, principalmente das galinhas que são disfarçadamente frangos)


2 colheres de açúcar - ou a gosto (como o beijo de uma namoradinha difícil de se conquistar na adolescência)


1 pacote de coco ralado (como confetes que não eram redondos em um carnaval distante)


1 colher de margarina (como o beijo escorregadio da pessoa furtiva por quem nos apaixonamos de verdade)


1/2 lata de leite condensado (uns pecados proibidos de uma época de convento, ou de uma prima distante ou de uma namorada proibida)


2 copos de leite integral (fica aqui a imaginação de quem ler este ingrediente)




Modo de Preparo:




Pegue os franceses e afogue-os até amolecerem. Amoleça-os bem.

Esprema-os com as mãos até ficarem feitos minguais. Como a mídia tenta convencer você de sua insiguinificância. Insiguinificantes e franceses meia boca são ruins.

Jogue todo o resto sobre eles e misture até não os destinguirem.

Unte uma forma, feito lábia de político; povilhe farinha de trigo, feito campanha eleitoral e ponha a massa no lugar, feito o eleitor.

Jogue os confetes por cima e deixe-os assarem num clima tropical.



Vinte e cinco minutos depois teremos um delicioso pudim à brasileira; coisa que os franceses já dispensaram no início do século XVIII.

sábado, 13 de outubro de 2012

Fim do Mundo


"Ler e não entender 
equivale a não ler"



Era para o mundo acabar ontem, dia 12 de Outubro de 2012, às 16 horas - diga-se de passagem. Pelo menos assim pensava Luis Pereira dos Santos, de 43 anos, que se auto intitulava como "profeta".

Na seita do Fim do Mundo - que não ocorreu - seus seguidores se desfizeram dos próprios bens materiais e a maior parte da arrecadação com a venda, obviamente, fora doada à seita. Em virtude disto, o "profeta", será indiciado por estelionato por usar o dinheiro para manter a casa onde eram realizadas as reuniões... Por acaso assim não o faz qualquer instituição religiosa?

Dentro da precária residência, localizada no Parque Universitário - uma das favelas de Teresina, Piauí - , foram encontradas cerca de uma centena de pessoas que seguiam a palavra do tal profeta. Enquanto que do lado de fora, além da multidão - outra centena - que observava o espetáculo, também havia um contingente de 100 homens da guarda civil e militar aguardando o desfecho. Ou seja, havia aproximadamente um policial para cada 2 pessoas no local. Um exemplo de eficiência das autoridades...

Também foi encontrada uma quantidade substancial de veneno para rato, o que levou as autoridades a cogitarem a possibilidade de suicídio coletivo dos membros da seita do fim do mundo. Tal suposição não é absurda se levarmos em consideração as façanhas de James Warren "Jim" Jones em 18 de Novembro de 1978, com o resultado de 918 mortes, entre outras de menor valor numérico, mas não menos considerável do ponto de vista vital, que já ocorreram ao redor do mundo.

Quando questionado sobre o fim do mundo não ter ocorrido, o "profeta" disse que deus o havia punido e que como forma de castigo cancelara o Juízo Final! Claro está, por esta declaração, o grau de importância do sujeito, uma vez que para o punir deus cancelou seus planos!

Dexando as ironias de lado, o curioso destas seitas e dos fanáticos que profetizam e terminam em suicídio coletivo ou individual (como é o caso do terrorismo) é que geralmente estão ligadas a religião, a qual, em sua maioria, refreia absolutamente a idéia de tirar a própria vida sob qualquer circunstâncias. 

Na mesma bíblia que é usada para reverter a mente destas pessoas há-de se encontrar citações comos estas, Números 11:14-15: “Eu só não posso: levar a todo este povo, porque me é pesado demais. Se tu me hás de tratar assim, mata-me, peço-te, se tenho achado graça aos teus olhos; e não me deixes ver a minha miséria.” Reparem que o eu da passagem pede que o mate, não diz que irá tirar a própria vida. Em 2 Coríntios 4:8-9 vamos encontrar: “Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desesperados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos.” Ou em João 14:27: "Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; eu não vo-la dou como o mundo a dá. Não se turbe o vosso coração, nem se atemorize." Se nos dermos ao luxo de não apenas repetir as palavras da bíblia feito um mantra, como proposto pelos fanáticos, mas também de analisá-las e compreendê-las pelo seu real valor histórico e moral iremos encontrar citações com este propósito de auto valorização em quase todos os textos.
 
Apesar disto, assim como nas seitas, as pessoa vêm sendo submetidas, quotidianamente, a ver só aquilo que não presta, a ver o pior lado da raça humana, a ver que o mundo é cada vez mais perigoso "lá fora", e que a única salvação está na palavra do Senhor; palavra esta que é desvirtuada para os benefícios de quem a prega, como é o caso do referido profeta já citado neste texto e outros, que é melhor nem citar.

Antes que eu possa descarrilhar os vagões é necessário que entendamos que desenhos como Popeye foi retirado do ar porque o seu protagonista vive com um cachimbo à boca; não se passa mais Tom e Jerry, os antigos, porque a violência é muito explicita, Two and a Half Man somente de madrugada devido ao seu linguajar. Todas estas e outras mudanças são feitas com o proposito de evitar que as crianças seja sugestionadas por programas.


Entretanto, vejam os exemplos das mídias que são patrocinadas por entidades religiosas: programas vespertinos nos mostram assassinatos, perseguições policiais, roubos, estupros, mais assassinatos, dramas familiares, drogas, abusos contra crianças, mais assassinatos e por aí se estende das 13 às 19 horas; em seguidas nos mostram um jornal, com o resumo das mesmíssimas notícias e logo após uma hora de pregação com a palavra do Senhor... E isto se dá no mínimo cinco vezes por semana!

Bunda e peito não pode, são amorais, mas  sangue e morte são legais!

Desta forma sou obrigado a me perguntar onde estão os desenhos para as crianças que não estão na escola? Todos temos condições de arcar com o custo de canal a cabo? Se as mídias televisivas se baseiam nas estimativas do mercado de consumo para fazerem a destribuição de seus progamas, que tipo de pessoas temos em casa atualmente? Mulheres de manhã, homens no almoço, psicopatas à tarde e santos a noite?


Escrevendo de uma forma politicamente correta, a sociedade está sendo induzida a uma forma de "reformulação do pensamento" ou "reeducação racional" ao se prostrar diante destes canais e absorver estas informações de tal maneira que a busca pela salvação é o único objetivo delas; enquanto que o objetivo desses canais de (des)informações é, único e exclusivamente, financeiro.

Há vinte anos atrás, quando quase ninguém era "politicamente correto" - concepção esta,  que em nosso país une duas palavras que sempre foram antagônicas - e, portanto, menos hipócritas, eu diria em alto e bom tom que "o povão, a massa, que é destituída de formas educacionais que a possam blindar contra a manipulação de lideres carismáticos, cujo único objetivo é lucrar, sofre abusadamente de lavagem cerebral." Diria para que as pessoas "reparem que as mídias que estão submetidas a preceitos religiosos, nos dão a violência do quotidiano no horário vespertino e nos vendem a salvação em horário nobre." 

Mas, infelizmente não estamos no mundo de vinte anos atrás, estamos no mundo de hoje, 13 de outubro de 2012. Um dia após o Apocalipse que não ocorreu. Para os fatalistas apocalípticos de plantão, peço que não se preocupem, pois 12/12/12 está próximo. Data esta que os Maias previram o Apocalipse.

Curioso é que não previram a própria extinção...

sábado, 6 de outubro de 2012

Processo Seletivo





"- Sêneca, por que acha que temos um vencedor?
- Mas o que quer dizer?
- Quero dizer: por que, acha, que, temos, um, vencedor?"

Diálogo entre Snow e Sêneca
Em Jogos Vorazes


Durante uma etapa de seleção, o selecionador separou dois grãos, que visualmente apresentavam diferenças e, subitamente, perguntou ao primeiro que lhe veio a mente:

- Você é o joio?

E o joio sendo pego de surpresa respondeu:

- Claro que não!

Então, seguindo aquilo que lhe fora instruido a fazer, o selecionador vira-se para o trigo e diz:

- Sinto muito, mas você está fora do processo seletivo.

E assim o trigo se retirou sentindo-se como fosse joio. 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Encontro Marcado

"...Talk about our future
Like we had a clue..."

- Katy Perry




 

07:48 AM

 

Sameera ergueu a janela de seu quarto e, mais uma vez, como já estava acostumada a fazer todos os dias desde criança, mas não naquela casa, contemplou o céu. Observou calmamente as nuvens, que lentas e suavemente deslizavam sob o azul celeste, tentando encontrar formas conhecidas... Mas hoje não havia rostos, não havia animais nem nada que se assemelhasse a algo conhecido anteriormente; apenas formas engraçadas que a lembravam de algodão doce: uma delícia conhecida recentemente.

 

Através do céu localizou o sol e por ele se orientou no espaço. Estendeu o balúchi sobre o chão e orou. Agradeceu pelas maravilhas de antes e de agora; pelo sol, quando havia sol, e pela chuva, quando havia chuva; rogou para que as pessoas fizessem do mundo um lugar melhor para se viver e que sempre se pudesse olhar e guiar aqueles que precisam de cuidados e caminhos... E tendo meditado sobre tudo o que queria permaneceu em silêncio por incontáveis minutos...

 

Levantou-se suavemente e, como se saísse de um transe, seguiu firmemente até a cozinha. Pegou a chaleira. Abriu a torneira. Preencheu a chaleira com água. Fechou a torneira. Levou a chaleira até o fogão e o acendeu. Enquanto a chama dançava no fundo da chaleira, Sameera abriu a porta do armário procurando pelo chá preto aromatizado com jasmim. De posse da embalagem, olhou-a como se meditasse em qualquer coisa e optou por não tomar chá. Não... Hoje não é um dia para chás, pensou. Pegou o pote com café e depositou quatro colheres bem servidas dentro da água, que já começava a criar pequenas bolhas de ar nos cantos internos da chaleira. O aroma do café preencheu intensamente seus pensamentos. Delicioso...  - pensou - com ou sem cardamomo? Cardamomo era bom... - decidiu-se.

 

Enquanto o café era preparado, Sameera seguiu até o banheiro e ligou as torneiras da banheira. Sabia que a partir de agora teria uns dez minutos para arrumar suas coisas antes que a água chegasse no limite ideal. Antecipadamente colocou alguns sais e óleos de banho para que seus aromas pudessem se dissipar pelo ambiente junto ao vapor d'água. Foi ao quarto pegar o roupão e o colocou próximo à banheira. Olhou em volta como quem procura saber se não havia esquecido de nada...

 

- Aff! O café!

 

Correu até a chaleira antes que a água entrasse em ebulição. No ponto, pensou. Apagou a chama. Esperou que o café assentasse no fundo da chaleira, apanhou uma xícara no armário e nela despejou o café. O cheiro deslizou tranquilamente por todo o ambiente. Sameera caminhou tranquila, mas cautelosamente segurando a xícara quente com as duas mãos, como se transportasse algo muito valioso, até o banheiro. Colocou-a ao lado do roupão sobre um pequeno armário branco que ficava ao lado da banheira.

 

Fechou a torneira e graciosamente começou a se despir: peça após peça até que adentrasse na banheira. O calor da água a envolveu como um intenso abraço e inevitavelmente a imagem de Azzam viera a sua mente... Conhecera-o numa casa de chás que ficava a três quadras de onde morava anteriormente. Sozinha, como de costume, desde a perda dos pais em um atentado, tinha o hábito de tomar seu chá preferido na mesma casa de chás que seus pais a levaram durante quase toda a infância. E foi ali que conhecera aquele rapaz tão atrevidamente elegante e gentil, que lhe perguntara se poderia respeitosamente fazer-lhe companhia... E como recusar tamanha audácia e beleza, Sameera se questionou.

 

Inicialmente conversaram sobre o tempo seco, sobre o café com cardamomo que ele pedira, sobre o chá preto com jasmim que ela sempre tomava, sobre aquela cidade e suas pessoas (as boas e as más), até que quase dois meses depois, assim que o gelo verdadeiramente começara a derreter entre eles, foi que se arriscaram a falar sobre si mesmos.

 

Azzam lhe contara que dentre um ano partiria para a capital para concluir sua tese de História (Do Cavalo de Tróia às Cruzadas: A Herança Bélica da História em Tempos de Jihad), assunto que deixou Sameera tão admirada, que o espanto sentido por ela foi denunciado descaradamente pelos seus olhos. Ela também lhe contou que pretendia concluir os estudos na capital, mas que ainda demoraria um certo tempo, pois estava no terceiro ano da Universidade.

 

- E o que você estuda, se não se importa em dizer? - perguntou ele profundamente interessado.

 

- Sociologia... - Fez uma pausa como quem espera ouvir algo, e não o ouvindo prosseguiu: - Pretendo, um dia, me ingressar na ONU.

 

- Uau! - disse Azzam


- Pretensão demais?


- Não, nenhuma!

 

Daí em diante, enquanto ensaboava suas pernas, Sameera lembrou-se que a conversa fluíra entre eles como se já se conhecessem há anos. Azzam, que também tinha um passado familiar em comum ao dela, explicou-lhe sobre os comportamentos cíclicos das sociedades e seus aspectos econômicos; prenúncios de queda ou a ascensão de uma ou outra determinada cidade ou sociedade e de como isso se enquadrava no contexto atual...


E muito embora aquilo tudo fosse um pouco surreal para Sameera, ela estava aproveitando cada momento. Para ela era um pouco difícil absorver tudo aquilo que Azzam lhe dizia, não pelo assunto em si, mas porque sua mente não estava só nas idéias de Azzam, estava também na forma com que seus lábios se moviam para dizê-las; no gesticular de suas mãos quando queriam dar ênfases as palavras e na maneira com que ele olhava para Sameera. No fundo era como se ele falasse para dentro dela com todo o seu corpo e não somente para seus ouvidos...


Perdida nestes e em outros pensamentos, sem que se desse por si, suas mãos deslizaram, sorrateiras, até a virilha; e, quando encontraram o objeto de busca, inevitável foi não associar a ação ao personagem que permeava seus pensamentos. Vasculhou a mente e o corpo em busca de tudo aquilo que a fascinara em seus muitos encontros amigáveis, que ocorreram desde aquele inocente café: Azzam e sua paixão pelos estudos; Azzam e suas questões sobre as sociedades, que embora revelassem um certo grau de imparcialidade, eram expressas de forma extremamente apaixonante através das questões que ele levantava.


Sua maneira gentil e sedutora de excluir o mundo a sua volta e direcionar absoluta atenção aos olhos de Sameera fazia com que ela se sentisse toda especial a ponto de se ver como o único ser vivo merecedor daquela profunda atenção. E talvez realmente o fosse... Lembrou-se de seus olhos - pérolas negras que brilhavam como se possuíssem uma chama interna - esquentando-a enquanto seus delicados lábios moviam-se apaixonadamente, dominando o assunto proposto... e suas mãos, ah... suas intocadas mãos... tão intimamente tocando-a naquele instante... ali naquela banheira... Fazendo-a sentir o roçar suave de sua barba por fazer... e aquele cheiro tão característico de café com cardamomo que o lembrava de forma tão profunda...


Sameera repousou a nuca sobre o encosto da banheira e deixou que seu corpo padecesse por alguns instantes após o prazer experimentado. Respirava com profundidade, como quem encontra o descanso após experimentar a extrema exaustão... E realmente havia-a experimentado; afinal, pensou, que mal há em conhecer-se?


Ensaboando-se, desta vez por completo, fez questão que seus dedos percorressem todas as partes de seu corpo, como se fosse a primeira e a última vez que fizesse isso. Maravilhou-se consigo mesma; e, excitou-se novamente, mas desta vez se conteve. Ergueu-se e soltou o tampão da banheira; ligou o chuveiro para enxaguar do corpo qualquer resquício de espuma e em seguida desligou-o.


Pegou o roupão sobre o armarinho branco e dirigiu-se ao quarto. Lá, deixou que ele escorregasse pelo seu corpo em frente ao espelho grande do guarda-roupa e novamente se admirou ao se ver nua. Secando-se diante do espelho, passou a admirar seus seios, primeiro pelo espelho, depois diretamente para eles; e embora pequenos, perante a maior parte dos seios das mulheres daquela cidade, via os seus como uma afronta étnica, uma certa arrogância e impertinência por serem empinados e rijos... Absurdamente lembrou-se das leis de Newton e riu consigo mesma!


Virou-se de lado e, empinando-se nas pontas dos pés, acompanhou as curvas do próprio corpo numa admiração inefável: nenhuma estria, nenhuma celulite... Lembrou-se de Azzam e seus olhos negros e flamejantes... Se eles a pudessem ver naquele instante...


Apesar de não estar acostumada, pegou o batom carmim, comprado recentemente, e aplicou-o sobre os lábios. Puxou-os para dentro como se beijasse a si mesma e suavemente soltou-os e delicadamente removeu os excessos com um lenço seco.


Abriu todas as portas do guarda-roupa e contemplou o arsenal que possuía. Saia? Sarja? Leg? Não, leg não! Jeans? Jeans... Sim, era bem a ocasião. Colocou-o sobre a cama e virou-se para escolher a parte de cima. Por um instante notou que tinha tantas opções que diante de tanta variedade era fácil perceber que não se tem poder de escolha sem que se ocorra uma certa indecisão anterior. Cerrou os olhos e estendeu a mão. Deixou-a deslizar sobre os vários tecidos num movimento de ida e volta... Parou. Apanhou a peça e abriu os olhos: era uma regata lilás...


- Não! Regata não!


Optou por uma camiseta branca, peça que sempre casava bem com jeans... quase tão bem quanto café e cardamomo... Sorriu ao lembrar-se. Virou-se para a gaveta de trajes íntimos e, em seguida, contemplou-se mais uma vez através do espelho. Não! Sem artifícios hoje...


Vestiu a camiseta que a envolveu como um colante. Seus mamilos se enrijeceram e sobressaíram-se à forma da roupa. Apanhou a calça e a vestiu. Olhou-se novamente de lado e contemplou as nádegas: perfeitas!


Calçou o All Star que estava na soleira da cômoda ao lado da cama e abaixou-se sob ela para pegar o presente que Azzam lhe dera. Fechou as portas do guarda roupa e vestiu-o.


Verificou se não havia esquecido nada ligado na cozinha ou no banheiro... Não. Seguiu em direção à porta, apanhou a burca que estava pendurada no mancebo, ajeitou-a ao corpo; pegou a bolsa e saiu.


Antes que pegasse o ônibus parou para tomar o seu chá de costume, mas ao contrário de sempre, optou por um café expresso com cardamomo. Enquanto esperava que o garçom lhe trouxesse o pedido, não muito distante dali, chegava-lhe aos ouvidos o som do desfile militar. Embalada ao som da marcha e pelo hipnotizante repique de tarol, lembrara de alguma coisa dentre as muitas outras que Azzam lhe havia dito sobre o assunto:


- ... tudo isso é muita política disfarçada. Procuro enxergar as coisas de uma maneira mais simplificada, sem maquiagens: no fundo, no fundo, somos todos soldados lutando por causas alheias ou próprias... A diferença, e isto é importante, é saber distinguir que quando se luta pelos outros - entenda outros como a sociedade - eles, "o governo", treinam você, dão uniformes e armas a você e dizem: mate por nós e se você fizer isso direitinho como nós ensinamos e mandamos, nós lhe daremos dinheiro, medalhas e o chamaremos de herói! Ainda que você nunca volte para casa, ainda que volte e nunca mais seja a mesma pessoa...

 

- Senhora? - chamou o garçom. E como não houve resposta ele tornou a chamar, aumentando um pouquinho o tom de voz: - Senhora?! ... Seu expresso!


- Obrigada.


Sameera saboreou aquele café de gosto tão singular e aromático. Lembrou-se de seus pais... Pôs o dinheiro sob o pires e dirigiu-se para o ponto de ônibus. Aguardou poucos minutos até que o ônibus passasse. Quando o viu se aproximando, estendeu o braço, dando-lhe sinal para que o motorista parasse. Subiu com certa dificuldade os degraus do ônibus por causa da burca e, após pagar a passagem ao motorista, encaminhou-se para o fundo do ônibus, que estava mais vazio.


Passando pelos assentos evitou, como sempre, olhar diretamente nos olhos de seus ocupantes, na maioria pessoas de idades avançadas, alguns jovens acompanhados de seus próprios pais e uns dois ou três casais de namorados. Mas, mesmo assim, uma senhora de cabelos avermelhados mediu-a, de cima embaixo e vice-versa, deixando que seus olhos verdes abruptamente despencassem sobre os castanhos de Sameera. A mulher idosa bufou num gesto nítido de desprezo. Sameera pensou em querer dizer algo, mas ficou apenas na intenção. Sentou-se no último banco, próximo à janela do canto esquerdo do ônibus, e aguardou pacientemente enquanto o veículo a conduzia ao seu destino.


À medida que se aproximava da parada, o som do desfile ficava cada vez mais claro e seus sons preenchiam os pensamentos dela. Novamente sentia o compasso da marcha e o reverberar do som do tarol, que estremecia sua alma... Percebeu uma pequena vibração vinda de sua bolsa e nela buscou pelo celular. Havia uma mensagem:

 

[onde você está?]

 

Ela digitou e enviou.

 

[no ônibus, a caminho da parada.]


O celular vibrou novamente:

 

[Smalla'Alik].

 

Sameera sorriu, lembrando-se da maneira suave com que Azzam pronunciava aquela expressão sempre que seus encontros findavam. E, enquanto Sameera mexia no celular, o ônibus se aproximava da parada, velocidade diminuindo, ruas passaram a ter menos veículos e mais pessoas. Guardas de trânsitos sinalizavam desvios e novas rotas; calçadas repletas de pessoas indo em direção ao espetáculo.

 

Ela digitou outra mensagem no celular, colocou-o de lado e passou a retirar a burca. Um dos rapazes que estava acompanhado da namorada, percebendo a movimentação, que vinha da parte de trás do ônibus,  não se conteve, e, ao olhar, sentiu-se hipnotizado pelos traços físicos de Sammera enquanto ela se despia da burca. A namorada dele, atraída pelo movimento repentino da cabeça do namorado, também olhou para onde o namorado olhava. Sem prestar muita atenção naquela mulher atraente no fundo do ônibus, apanhou o queixo dele abruptamente e com a mão tentou virar a face novamente para a sua atenção.

 

- Desculpe-me... - disse Sameera olhando-a nos olhos.

 

- Não por isso! - retrucou a jovem, muito a contra gosto.

 

É... não por isso, pensou Sameera, ao se levantar e apanhar o celular. Acessou o botão que sinaliza a parada do ônibus no próximo ponto; e, ao passar por aquela senhora que a menosprezara anteriormente, olhou-a cegamente e disse:

 

- Se Allah pode perdoar a senhora, com certeza, Ele, em sua extrema sabedoria e misericórdia, também pode me conceder o perdão!

 

- Do que está falando, moça?!

 

Mas Sameera não estava mais em si para dar atenção a pergunta. Logo após apertar a tecla send, ouviu pela primeira vez o som do celular que Azzam havia posto do lado esquerdo do colete que lhe dera. E, antes que seu último pensamento se formasse - sendo este a lembrança de que esquecera a janela aberta -, sentiu-se, subitamente, pela segunda vez naquele dia, envolvida intensamente por uma onda de calor... Entretanto, desta vez, o calor fora tão extraordinário que não só a abraçara de forma definitiva, como também estendera seus braços ardentes a todos os vinte e oito ocupantes do ônibus e pouco mais de umas trinta pessoas que estavam próximas a ele na rua.

 

 

***

 

14:26 P.M.

 

Não muito distante de onde o atentado contra o desfile militar ocorrera, em cômodo simples de um bairro no subúrbio, após raspar a barba e os cabelos, Azzam Faris, cujo nome real nunca fora este, bem como a profissão real também nunca fora aquela, visualizou a mensagem que recebera em seu celular:

 

[Insha'Allah].

 

Está feito - pensou. E assim, como das outras vezes, passadas e futuras, após separar a pasta contendo todos os dados sobre a vida de Sameera Fadwa e todos os documentos em nome de Azzam Faris, incluindo o celular, arremessou-os dentro de um pequeno barril de aço onde chamas de querosene ardiam.

 




 

 


Agosto/Setembro de 2012

 

sábado, 15 de setembro de 2012

Indelével

Cansa-me esta vida que não passa;
O trocar das máscaras de todos os dias;
O sorriso que não sei mais expressar;
No rosto a paisagem que se apagou;
O "bom dia" que não sei mais se será...
Será?

Há dias que saio por aí e perco-me;
Dias que não estou em mim... ainda que esteja;
Dias de profundas tristezas;
Agonias opressoras e desumanas;
Apertos no peito que nem sei de onde vêm...
Um lacrimejar pelos cantos da alma como que perdesse entes queridos;
Um lamentar-se sem fim de quem nunca tem nada e ainda sim perde tudo na tragédia...

Do alto da colina dos anseios contemplo todos os funerais que há em mim:
Sonhos, que nunca serão, enterrados na vala comum do que sou...
E encerra-se em mim o tiro letal que não matou;
A fuga desenfreada, da qual ninguém escapou;
Da criança sem sono, no escuro, seu desespero;
Os homens de preto, sérios, no enterro;
A balança alterada do Bem e do Mal;
Os selos corrompidos do Juízo Final;
O canudo lacrado escondendo um diploma;
A felicidade inerte em dezesseis anos de coma;
A ironia do sobrenome (sorte?);
A vida que talvez só me encontre na morte;
O suicida e seu próprio fracasso;
A lentidão do tempo devorando o aço;
A cicatriz antiga que encolheu e fechou;
A verdadeira ferida que nunca cicatrizou;
A lágrima que escorreu e pingou e ninguém viu;
O pássaro belo que preso ninguém mais ouviu;
A porta aberta pela qual ninguém entrou;
O noivo no altar que a noiva abandonou;
O grito que morreu assim que saiu;
O olhar de deus, que me ignorou e partiu...

Jazem em mim, adormecidas, todas as possibilidades impossíveis de serem
Às margens de erros de todas as estatísticas incompreensíveis:
Folhas secas que me caem do espirito
Como variáveis negativas sem soluções mirabolantes...
E a esperança é o cálculo que não previu os acidentes que  aconteceriam
E dolorosamente aconteceram....


Por entre lápides sem nomes e velhos ciprestes tristes
Novamente a revejo: descalça, como nunca deixara de estar,
Sobre o que sobrou da grama, outrora verde,
Do que restou da alma, outrora viva,
A moça, a mesma de outrora e de sempre,
Depondo seus lírios sobre corpos recém sepultados
E sussurrando suas preces sinceras sob a chuva:


"Um lírio para cada oportunidade que morreu;
Um lírio para cada semente que não vingou;
Um lírio para cada prece não atendida;
Um lírio para você e outro para mim;

Um lírio para cada adeus e despedida;

Amém."

E de repente invade-me uma estranha sensação de paz absoluta:

Faltará lírios no mundo...
Além!

10/08/2012





terça-feira, 4 de setembro de 2012

Pintura Íntima



Nasci para ser pintor,
Não poeta ou magistrado.

Certa vez, por acidente,
Colori paredes da alma
Aquarelando crepúsculos.

Desde então, todos os dias,
São fins de tardes em mim...


3-4/09/2012

sábado, 25 de agosto de 2012

... E assim se foi a infância



Eu não sei quem inventou aquilo, mas quem quer que tenha sido com certeza não imaginou que viraria uma febre de desejo de muitas gerações de meninos... E eu, como qualquer outro, queria um.

- Pai, me dá um carrinho de rolimã?

- O que?

- Um carrinho de rolimã!

- Rolemã?

- Não pai: ro-li-mã, não sabe? São aqueles carrinhos de madeira com rolamentos de carro de verdade.

- Aquilo não é pe-ri-go-so?

- É nada pai! Os garotos da rua de cima colocaram uns pedaços de pneus que servem de freio para o carrinho.

- Não sei não...

Quando meu pai falava “Não sei não...”, apesar de ser uma dupla negativa, era uma maneira gentil de dizer “não” mesmo. 

- O senhor pode pelo menos pensar no assunto?

- Posso.

- Promete?

- Prometo. Você já fez a sua lição de casa?

- Já sim senhor.

- Então pode ir brincar na rua, mas já sabe, né?

O que meu pai queria dizer era para que eu voltasse até as oito da noite e que não saísse além dos limites do bairro. Não que houvesse perigo após esse horário ou que eu fosse sair além do bairro, mas o meu pai sempre fazia questão de avisar o que ele não queria que eu fizesse. 

Só para ilustrar este comentário: lembro-me de que certa vez, ao invés de ir direto para casa após a aula, eu fui até a casa da minha avó Matilda, que na verdade não era minha avó, mas a pessoa que alugou a parte dos fundos de sua casa para nós durante um certo período e a quem me apeguei facilmente.

Dona Matilda, que foi como a mãe que não tive, apesar de ser uma senhora de uns sessenta anos, com muitos cabelos grisalhos, era de uma vitalidade incrível: enquanto muitas mulheres na mesma idade só sabiam falar de doenças, médicos e uma infinidade de enfermidades, ela era toda ativa, eloqüente e muito radiante.

Naquele dia eu a havia encontrado perto do mercado enquanto voltava da escola. Ela estava sozinha e carregava algumas sacolas de papelão. Provavelmente ela nem precisaria de mim para carregar aquelas compras, mas eu queria ajudá-la.

Acompanhei-a até sua casa e ela insistiu que eu esperasse um pouco para que almoçássemos juntos. Meu pai até que se virava bem na cozinha, dentro das limitações de um pai solteiro, mas a comida de uma senhora de sessenta anos que já cozinhava há umas três gerações era outra coisa. Não foi difícil decidir. Depois do almoço ficamos de papo furado por um bom tempo.

Quando voltei para casa, que era uma pequena casa agregada aos fundos de uma mercearia que meu pai havia comprado há pouco mais de um ano, foi que percebi que já passava das cinco da tarde.

Havia uns três clientes na loja, por isso ele apenas me olhou e disse que assim que fosse possível iria conversar comigo. A primeira coisa que me veio a mente foram palavras que já tinha ouvido anteriormente:

- Assim que sair da escola primeiro passe em casa. Depois rua, certo?

Meu pai não é desses que ficam ameaçando: “não faça isso senão eu vou fazer aquilo”, “não faça aquilo senão eu vou fazer isso”... era “não faça” ou “faça” e pronto.

Pouco depois ele entrou no meu quarto e perguntou se eu tinha dever de casa e eu respondi que sim. Pediu para que eu o fizesse e permanecesse no meu quarto para pensar melhor sobre o que eu tinha acabado de fazer. Fiz o dever em uma hora e imaginei que ficaria no quarto até que a mercearia fechasse, que era por volta das oito da noite. E assim ocorreu.

Eu estava morrendo de vontade de ir ao banheiro, mas para isso eu precisava passar pela mercearia e possivelmente me deparar com meu pai. Estava tão arrependido que optei por não ir.

Oito horas: ouvi o barulho da porta de aço sendo baixada e os estalos dos disjuntores ao desligar as luzes da loja.

A boca foi adquirindo um sabor amargo e inevitavelmente comecei a tremer. Eu já havia apanhado do meu pai uma vez. Cinco lambadas de cinta nas pernas... E isso doi. Doí! Doí demais!! O suficiente para se lembrar por um bom tempo.

Ele entrou pelo quarto e ficou me olhando nos olhos. Não resisti muito tempo e desviei o olhar.

- E, então, Henrique... o que tem a me dizer?

- Que deveria ter vindo direto para casa, pai, depois da escola... Mas encontrei a vó Matilda saindo do super mercado e ajudei ela com as compras até em casa, depois almocei lá e... e... acabei esquecendo da hora... Me desculpa pai!

- “Me desculpa, pai...” - ele sussurrou. – Tente imaginar o que é ficar aqui trabalhando, fazendo contas, sorrindo para os clientes, enquanto eu não tenho a menor idéia de onde está o meu filho? Sabe quanta coisa ruim se passa na cabeça numa horas dessas Henrique? Como é que você acha que eu iria receber a noticia caso alguma coisa ruim acontecesse?

- Desculpa, pai...

- Eu desculpo, mas isso não pode passar em branco. Desce as calças e põe as mãos na parede.

- Desculpa... pai...

- Obedece, Henrique!

Desci as calças e encostei as mãos na parede e mal dobrei o tronco quando ouvi uma explosão contra a parede logo acima da minha cabeça. Ele não me bateu, mas deu uma cintada na parede, provavelmente com toda a força que possuía.

- Se isso acontecer de novo, serão três lambadas destas, sem choro nem vela. Entendeu?

Balancei a cabeça positivamente.

- Pode se vestir.

Quando abaixei para subir a calça percebi que todo o xixi que eu tinha segurado havia escorrido pelas minhas pernas. Meu pai viu aquilo e disse para que eu fosse tomar um banho. Quando voltei do banheiro percebi que seus olhos estavam vermelhos. Ele nunca disse nada e nem eu...

- Henrique, você está me ouvindo?

- Estou sim pai! Só no bairro e em casa até as oito, certo?

- Certo.

Os garotos da rua de cima começaram uma nova modinha umas três semanas depois desse pequeno incidente entre eu e meu pai: carrinhos de rolimã. São feitos com uma prancha de madeira resistente o suficiente para sustentar o peso de quem os conduziam, dois eixos -um traseiro outro dianteiro- e rodinhas de rolimã... simples assim.

Os primeiros modelos tinham duas rodinhas pequenas atrás e uma grande na frente. Os garotos cortavam pedaços de pneus de carros e prendiam em cada um dos lados do eixo da frente para servir de freio. Mas descobriram rápido demais que frear o carrinho daquele jeito não era nada emocionante.

Em menos de uma semana já haviam acrescentado aos carrinhos algumas mudanças que os deixavam mais interessantes: agora possuíam duas rodinhas atrás e duas na frente, isso os deixavam mais estáveis e mais velozes. Na lateral da prancha, protegido por uma ponteira de metal, foi colocado um pedaço de pau que lembrava muito um freio de mão, que quando acionado além de ajudar o carrinho a dar um cavalinho de pau ainda dava um efeito diferente pois saia faísca. Não usavam mais o freio a base de pneu.

Durante a primeira semana tudo o que fiz foi observar os outros brincarem. Todos os garotos tinham carrinhos de rolimã, menos eu. Nunca pedi emprestado porque sabia que eles não emprestariam. Havia uma regra entre os garotos da minha época: se você não pode emprestar o seu, não peça o dos outros. O que no meu caso significava que como eu não tinha, também não tinha direito de andar no de ninguém.

Mas isso não me impedia de imaginar as sensações: o vento batendo no rosto a medida que a velocidade aumentava, a falta de orientação após o cavalinho de pau, a inevitável risada ao subir a ladeira e os planos do que fazer ao descer novamente.

Na metade da segunda semana deixei de sair para a rua após fazer a lição de casa. No dia seguinte meu pai percebeu que alguma coisa não ia bem e veio conversar comigo.

- O que você tem Henrique?

- Não é o que eu tenho, pai, é o que eu não tenho...

- E o que você não tem, Henrique?

- Um carrinho de rolimã.

- Ah...

- Todo mundo tem um, pai! Todos os garotos desta rua, da rua de cima, da rua do lado e de outras ruas... Menos eu! E ninguém empresta!

- Então porque todo mundo tem um você acha que você deve ter um também?

- É por ai...

- É por ai? E isso lá é resposta decente?

- Não...

- Então pensa melhor no por quê eu tenho que te dar um carrinho de rolimã, e depois a gente conversa.

- Ah, pai!

- Sem “ah, pai!”, vai brincar Henrique.

Mas eu não fui. Fiquei aquele dia em casa, e o dia seguinte, e o seguinte do seguinte e o resto da semana. Então ele veio com uma nova:

- O que você acha de ganhar um vídeo-game?

- É mais caro que um carrinho de rolimã.

- Sim, mas você não quer um vídeo-game?

- Não este ano. Quero um carrinho de rolimã.

- Você não vai desistir tão fácil, né?

- Não...o que o senhor prefere: que eu passe o resto dos dias em casa ou que brinque na rua como uma criança normal?

Meu pai me olhou com certa curiosidade.

- O senhor queria uma resposta decente... eu fiz uma pergunta decente!

- E onde você vai arrumar as rodinhas?

Só de ouvir esta pergunta eu já fiquei todo radiante.

- Nos mecânicos do bairro.

- Certo... Quando você tiver as rodinhas nós montamos um carrinho.

Por uma semana inteira, assim que voltava da escola e fazia a lição de casa, sai para procurar as rodinhas de rolimã. Era mais difícil do que imaginava. Todos os mecânicos tinham a mesma resposta:

- Fulaninho já passou por aqui e levou as que eu tinha.

- Ciclano pegou as ultimas ontem.

- Dei para Beltrano a única que sobrou.

Contei para o meu pai sobre a dificuldade de encontrar as rodinhas e ele se limitou a dizer:

- Sem rodinhas, sem carrinho.

Sinceramente não tinha mais vontade nenhuma de sair à rua e ficar vendo os outros se divertirem sem que eu pudesse fazer o mesmo. Chegava da escola, almoçava e fazia a lição de casa. Ligava a televisão e ficava assistindo desenho a tarde inteira.

Aquilo realmente começou a incomodar o meu pai.

- Você vai ficar na frente da TV a tarde inteira todos os dias?

- Se o senhor tivesse me dado o vídeo-game não seria diferente, seria?

- Talvez...

No sábado seguinte meu pai me acordou e colocou um aviso na porta da mercearia dizendo que só abriria após as treze horas. Pediu para que eu me trocasse porque nós iriamos sair. Tirou a Brasília branca da garagem e saímos.

- Onde vamos, pai?

- Resolver um problema.

Naquela manhã meu pai e eu fomos em tantas oficinas mecânicas que depois da décima eu parei de contar. Era quase meio dia e ainda não tínhamos as quatro rodinhas. Percebi que fazíamos o caminho de volta para casa. Quando chegamos meu pai disse que eu nem precisava descer do carro. Ele entrou na mercearia e depois de cinco minutos saiu com um papel na mão e colou na porta de aço:

“EXCEPCIONALMENTE HOJE
NÃO ABRIREMOS”

- Pai?

- A gente não volta para casa enquanto não achar essas rodinhas, certo?

- Certo.

O fato de querer ter um carrinho de rolimã foi responsável por uma das ocasiões mais incríveis da minha vida. Nunca até aquele dia havia passado tanto tempo do lado do meu pai. Almoçamos fora, entramos em todas as mecânicas que vimos abertas até que tivéssemos as quatro rodinhas do mesmo tamanho, fomos ao cinema e assistimos o De Volta Para o Futuro. Na volta acabei dormindo dentro do carro e ele me carregou até a cama.

Acordei com umas pancadas que vinham da frente da loja. Levantei-me e fui ver o que era. Meu pai estava sentado no chão da mercearia fixando o eixo traseiro no carrinho. E não era só isso. Enquanto o observava pelas costas, ele me contou que na época que eu ainda estava procurando as rodinhas ele usava a parte da manhã, que era quando eu estava na escola, para fazer as peças do carrinho.

- Pedi para o seu Carlos, o marceneiro, para cortar as madeiras e dar um trato na aparência. Ele conseguiu uma madeira bem resistente, por isso acho que o seu carrinho vai ser mais pesado do que o dos seus colegas... Ah, também pedi para ele pintar...

Meu pai se virou e me mostrou um carrinho preto com duas listras amarelas que o cruzava de ponta a ponta. Fez que ia me entregar o carrinho e recuou.

- Primeiro quero que me faça um favor.

- Qualquer coisa!

- Qualquer coisa mesmo?

- Qualquer!

- Por favor, vê se não vai se arrebentar em cima desse negócio!

- Pode deixar!

- Promete?

- Prometo.

- Mesmo?

- Pai...

É claro que todos os garotos queriam dar uma volta no meu carrinho, mas eu não deixava. No começo isso gerou um certo mal estar, mas criança esquece rápido essas coisas.

Por mais ou menos um mês e meio,todos os dias, eu saia para brincar com o carrinho. No começo ficava um pouco inseguro quanto ao uso do freio lateral, mas depois fui pegando a manha. Percebi que quanto mais rápido o carrinho estivesse e mais firme eu puxasse o freio maior era o giro.

Depois, começamos a empurrar o carrinho um dos outros para que pagássemos mais impulso. Um amigo apoiava a mão nas costas de quem estivesse estivesse no comando e começava a empurrar. Quando a rua começasse a inclinar ele parava e dali por diante, como soube anos depois, a física se encarregava do resto.

De certa forma a apreensão do meu pai foi apaziguando com o tempo, principalmente quando me via voltando para casa inteiro.

Uma vez enquanto jantávamos ele comentou:

- Você reparou que você está comendo bem mais do que antes?

- Sim... também estou ficando com a carne mais dura.

- Isso – ele riu – se chama músculos! Você está adquirindo músculos.

- Mas eu nem faço exercício!

- Você que pensa! Cada vez que você desce, você tem que trazer o carrinho até o topo da rua. Isso não deixa de ser exercício.

- Ah...

Foi num domingo, um domingo como outro qualquer, que, enquanto brincava na rua com o carrinho e meu pai estava sentado à porta da mercearia foleando o jornal, mal sabíamos que eu estava prestes a quebrar a minha promessa.

- Pai! Pai! Olha só o que eu sei fazer!

Ele fechou o jornal e ficou em pé.

Pedi para o Gabriel, que era o outro garoto que brincava comigo naquele dia, para que me empurrasse.

Meu pai falou qualquer coisa que não consegui ouvir.

Senti o vento no rosto, a sensação de liberdade, o coração acelerado, todos os músculos retesados aguardando o momento certo,a virada para a esquerda, o puxão no freio, a força demasiada, o pedaço de madeira com ponta de aço levantando o carrinho do chão, o carrinho não completando o cavalinho de pau, eu sendo arremessado para frente, o carrinho no ar seguindo a mesma trajetória, eu sentindo a cabeça e o ombro baterem com força no asfalto, o asfalto ralando a carne, outro baque na cabeça seguido de um clarão...


***


A enfermeira entrou na sala carregando uma maquina de cortar cabelo, entregou ao médico e saiu.

- Seu pai está lá fora, quer que eu o chame?

- Não... depois.

- Não precisa se preocupar – disse o médico, preparando-se para ligar a maquina e raspar uma parte do meu cabelo.

- Não estou preocupado. Pelo menos não comigo...

- Então com o quê?

- Com o carrinho...

O médico aplicou a anestesia e começou a dar os pontos.

- Quebrou?

- Acho que não, mas meu pai não vai deixar que eu ande de novo.

- Vai sim.

- Fala isso por que não o conhece.

- Bem... aqui em cima já resolvemos o problema... vamos ver como vai ficar este ombro.

O ombro estava horrível. Enquanto vinhamos para o pronto socorro meu pai mal conseguia prestar atenção no caminho. Toda hora ele olhava para o meu braço, balançava a cabeça e perguntava a mesma coisa:

- Tá doendo muito, filho?

- Não, pai.

O médico pegou uma tesoura e cortou a lateral da minha camiseta. Tirou-a do meu corpo e, jogando-a no lixo, pediu para que eu lavasse o machucado com um sabonete que estava perto da cuba de metal. Apenas a idéia de encostar a mão próxima ao machucado já o fazia doer. Virei-me para o medico:

- Acho que não consigo sozinho...

- Vou pedir para que uma enfermeira o ajude. Enquanto isso vou falar com o seu pai, ele deve estar preocupado.

- Doutor, faz um favor?

- Sim?

- Não deixa ele mais preocupado do que já deve estar, tá?

Ele me lançou um sorriso e saiu da sala. Logo em seguida a enfermeira entrou. Ela calçou as luvas descartáveis, colocou a mascara no rosto e sentou-se próxima à cuba.

- Venha aqui mocinho!

De um jeito muito delicado ela molhou o pano e passou-o primeiro pelo meu braço limpando os resíduos do que estava no asfalto e se apegaram à minha pele. Vez ou outra quando parecia que ela ia passar o pano úmido sobre a ferida instintivamente eu recuava o braço.

Se você não olhar ajuda mais.

- Gostaria, mas sou curioso demais...

- Vou colaborar então: fecha os olhos e eu narro: estou higienizando a região periférica da escoriação para evitar que qualquer sujeira infeccione o machucado. Depois vou cuidar da ferida em si. Primeiro vou umedecer uma gaze com água oxigenada e repousá-la sobre o machucado; enquanto ela age a área da ferida soltará pequenas bolhas. Você sentirá uma leve ardência, mas nada muito forte.

- Não dá para anestesiar que nem os pontos na cabeça?

- Não é recomendado, a região é muito extensa e você vai ter que fazer isso em casa cedo ou tarde e lá não terá anestesia.

- Verdade...

- O maior problema é o lugar do machucado. Essa área aqui – e ela assinalou o ombro e parte do braço direto com o indicador – tem muita mobilidade no dia a dia: levantar ou abaixar o braço, coçar qualquer parte do corpo, um simples gesto para pegar qualquer coisa ou escrever faz com que você exercite esta área, o que não é bom nessa situação.

- Como assim?

- Para que sua pele comece a se recompor, o sistema de defesa do seu organismo, expelirá, através do ferimento, um líquido com propriedades de cicatrização e proteção. Quando este liquido estiver secando, ele irá enrijecer esta parte do tecido cutâneo e dificultar a movimentação do mesmo...

- Moça?

- Sim!

- Eu só tenho dez anos, facilita a explicação!

- Vai acontecer como qualquer outro machucado!

- É a primeira vez que me machuco.

- Você nunca se machucou?

- Não.

- Nunca cortou o dedo? Furou o pé? Arranhou a pele?

- Nada. É a primeira vez.

- Nossa, que estréia, heim? E você nem está chorando!

- P'ra senhora ver!

- Resumindo: essa ferida vai se tornar uma uma casquinha protetora e isso vai dificultar a movimentação do seu braço. Ela vai coçar e não é para coçá-la. Você vai ter vontade de arrancar e não é para arrancá-la. Também não pode por nada por cima até que a casquinha esteja formada, caso contrário o seu machucado vai grudar na camiseta, aí sim, mocinho, você vai chorar para arrancar. Entendeu?

- Entendi.

- Acho que você vai ficar de molho por um tempinho, quero dizer, provavelmente você não vai à escola esta semana.

- Nossa! Não tinha pensado nisso.

-Pois é!

Ela terminou de limpar o machucado e disse que já estava quase pronto. Perguntou se o doutor Fábio já tinha aplicado a antitetânica e eu disse que não.

- Vou chamá-lo. Continue comportado aí mocinho.

Quando a porta se abriu meu pai estava junto desta vez, mas o semblante de seriedade e preocupação que ele tinha no rosto quando chegamos ao pronto-socorro já havia desaparecido. Ele começou a conversar com a enfermeira que havia feito a “higienização da escoriação” e o doutor Fábio se dirigiu diretamente para um armário branco com portas de vidro e de lá retirou uma seringa descartável e uma ampola do bolso do jaleco branco.

- Você, rapazinho, tirou tudo de letra até agora. Só vou aplicar isso aqui e já era!

Naquela tarde ao voltarmos do pronto-socorro me desculpei com ele por não manter a promessa de não me machucar. Ele disse que só havia feito eu prometer para que eu fosse mais cuidadoso do que de costume, mas que estava tudo bem. A pergunta sobre o carrinho estava na ponta da língua, mas achei que aquela não era a melhor hora.

No dia seguinte meu pai foi até a escola levar o atestado. Como não tinha nada para fazer, fui junto. Ele queria que eu esperasse dentro da brasília, mas disse que queria esticar as pernas um pouco e ele não fez objeções.

A conversa com a diretora foi rápida. Ele se dirigiu até a secretaria, solicitou conversar com a responsável pela turma da quinta série, a diretora Maria Estella o atendeu, meu pai explicou o ocorrido e entregou o atestado. 

- Muito obrigada pela consideração, Sr. Kauffman.. Mas se me permite uma pequena observação: quem cuidará dos interesses pessoais e escolares do Henrique enquanto o senhor estiver trabalhando?

- Dos pessoais cuido eu com sempre cuidei, quanto aos escolares estou aberto a sugestões. A senhora apresenta alguma?

Ela ficou ligeiramente sem graça.

- Vou conversar com os professores do Henrique para ver o que pode ser apresentado e entrarei em contato com o senhor.

- Obrigado.

A conversa não durou mais do que dez minutos. Meu pai não entrou em detalhes e não deu abertura para perguntas. Quando meu pai queria, o que poderia ser uma grande conversa tornava-se um rápido dialogo.

- Pai, o que o senhor vai fazer com o carrinho?

- Nada. Ele vai ficar lá esperando que você melhore para ser usado novamente.

Aquilo realmente me surpreendeu.

- Não esperava por isso, não é mesmo? – disse ele.

- Não mesmo.

- Acredito que não adianta ficar mentindo para mim mesmo. Você está crescendo. Hoje são carrinhos. Amanhã serão garotas. Logo você estará saindo com seus amigos e voltando de madrugada... Se eu não me conformar com isso ou tenho um enfarte ou faço de você um prisioneiro. Quer almoçar fora hoje?

- E a mercearia?

- Decidi não abrir hoje.

- Vamos comemorar alguma data importante?

- Nada especial. Quer ou não?

- Mas é claro que sim!


***

Os dias seguintes passaram-se tranqüilamente em nossas vidas. Religiosamente meu pai abria a mercearia às oito da manhã, varria a área de circulação dos clientes, passava um pano umedecido com desinfetante e colocava o carpete na porta da loja. Lembro-me de certa vez ter perguntado a ele o porque o carpete não tinha o nome da loja, que era o mesmo que o nosso sobrenome. Ele disse que a idéia de que alguém possa vir a limpar os pés no seu nome não era lá muito agradável.

Até que os clientes chegassem não havia muito o que fazer, então ele abria um jornal do dia ou alguma revista da semana e ia os devorando até que fosse interrompido. Quando muito, para esticar as pernas ou movimentar o corpo, ele varria a loja novamente, mesmo sem necessidade. Aos poucos fui percebendo o quanto o meu pai tinha uma vida reservada, pra não dizer solitária.

Normalmente eu passava o dia fora, parte na escola, parte na rua e nesses dois lugares estava cercado de amigos ou me divertindo de alguma forma; mas meu pai ficava a maior parte do dia cercado de pessoas com quem não tinha a minima intimidade ou que se fosse um pouco mais próximo era para falar sobre o novo reajuste da gasolina ou o resultado de alguma partida de futebol.

Cloquei os braços sobre o balcão e após cruzá-los apoiei o queixo sobre eles.

- Pai? Posso fazer uma pergunta?

- Manda.

- Por que o senhor não se casa novamente?

Ele me olhou com certa curiosidade.

- Por que? Está sentindo falta de mais alguém por aqui?

- O senhor está me devolvendo a pergunta...

- Eu sei... Nunca pensei em me casar novamente. Namorar?... talvez! Mas me casar novamente?, eu acho que não.

- O senhor não se sente sozinho?

- Sozinho? Não! Tenho você, ora!

- Sabe que não foi isso que quis dizer.

- Sei, sim. Não, não me sinto sozinho. Por que toda essa preocupação repentina, Henrique?

- Não sei, mas o senhor está novamente me devolvendo a pergunta...

- Vem cá, meu filho. Deixa eu tentar explicar umas coisa para você: você vai querer uma conversa de pai para filho ou de homem para homem?

Dei a volta pelo balcão e me sentei ao seu lado.

 Homem para homem... pode ser?

- Seu avô, como você sabe, faleceu antes de você nascer. Era um homem bom, trabalhador e esforçado. Não havia um dia em que ele não acordasse já pensando na manhã seguinte. Ele era um desses homem com olhos só para o futuro. Trabalhava hoje sempre com o pé no amanhã. Não digo que isso seja errado, mas eu e a sua avó vivíamos sempre no presente. E mesmo quando meu pai estava conosco, era como se não estivesse. Nunca tinha tempo para mim ou para minha mãe. Não me lembro de um dia sequer em que ele tenhamos saído todos em família, ou ao menos uma vez que ele tenha saído com a minha mãe.

“Ela nunca reclamou, mas seu descontentamento era tão visível quanto o meu. Mas o senhor Magno Kauffman estava sempre ocupado demais para perceber. Conforme fui crescendo percebi que aquele estilo de vida não tinha a menor possibilidade de ser o meu estilo de vida. Como filho único ele queria que eu estudasse, fizesse administração e assumisse a concessionária de automóveis como seu legitimo herdeiro. Só que eu não tinha a menor vontade de fazer isso. Sem falar na falta de vocação para lidar com vendas.

“Então discutíamos muito sobre este assunto. Muito mesmo! E por mais que duas pessoas se gostem elas não conseguem ficar juntas enquanto tem pontos de vista extremamente opostos. Como na época eu não trabalhava e era ele quem me sustentava aceitei pelo menos a proposta de fazer administração. Conheci sua mãe na faculdade e começamos a namorar.

“Uns três anos e meio depois seu avô faleceu de ataque cardíaco e precisei largar a faculdade para cuidar da obra dele. Mamãe também ficava a maior parte dos dias sozinha em casa e acabou por se entregar a uma profunda depressão que a consumiu em menos de seis meses.

“Eu já não gostava de trabalhar lá, e sem ter quem me obrigasse por laços de sangue é que não trabalharia mesmo. Consultei um bom advogado, fizemos pesquisas de mercado e optei por vender a concessionária e a casa de meus pais. Comprei uma nova casa, um carro decente e pedi sua mãe em casamento.

“Parte do dinheiro que sobrou eu investi em terminar o curso de administração, pois ainda que não gostasse já tinha feito mais da metade do curso. E a outra parte deixei no banco rendendo, o que não era muita coisa.

“Depois que me formei arrumei um emprego de meio período como gerente de um super mercado de bairro e sua mãe em uma fábrica de cosméticos. De certa forma tudo ia bem e estávamos felizes. Bem... pelo menos eu pensava assim.

“Um dia ela chegou em casa com um ar de preocupada e eu achei que ela tinha sido demitida. Então ela me mostrou um papel branco do médico dela dizendo que ela estava gravida. Eu mal cabia em mim, mas ela não participava da mesma felicidade. Disse que estava prestes a ser promovida na empresa, que o mercado de trabalho já prejudicava a mulher por ser do sexo frágil, que por causa da gravidez qualquer outro homem menos qualificado assumiria o cargo, que discutíssemos a possibilidade de um aborto...

- O que é isso?

- É uma forma questionável de interromper a gravidez antes da formação completa do feto.

- Interromper... Matar!

- Mais ou menos isso, mas sem que o feto tenha a consciência de que está morrendo.

- Como é que uma pessoa morre sem saber que está morrendo?

- Essa é a questão: um feto não chega a ser uma pessoa, não tem um cérebro formado com idéias pré concebidas a ponto de criar conceitos e se defender sem auxilio. Por isso o governo proíbe esta pratica.

- E o senhor?

- Bem... aquilo me deixou estarrecido. Por dois motivos: primeiro porque eu realmente amava sua mãe e segundo porque sem perceber me casei com alguém que era igualzinho ao meu pai, só que de saias. Conversamos muito sobre não fazer um aborto e quando ela disse que faria de qualquer jeito, pois naquele momento ela não poderia perder aquela oportunidade, eu juntei todos os exames e disse que se alguma coisa acontecesse com o bebê que ela carregava ela responderia por isso judicialmente e se a justiça não abrandasse a minha ânsia ela responderia por isso de uma forma não muito agradável.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que quando um homem está de cabeça quente fala o que não deve e faz o que não pode.

- Não entendi.

- Resumindo eu ameacei a sua mãe, disse a ela que ela não ficaria viva para se arrepender do que queria fazer. Sei que não deveria ter dito isso, muito menos gritando com ela, muito menos no escritório da empresa que ela trabalhava, muito menos na frente do chefe dela...

- Pai!

- É... eu sei, eu sei... Mas eu precisava de garantias de que sua mãe não cometesse nenhuma besteira quando eu não estivesse por perto. Então achei que expondo quem ela realmente era onde ela trabalhava as pessoas iriam olhar para ela com mais atenção. De certa forma funcionou, você está aqui, não é?

“Mas daí em diante a relação só rolou morro abaixo. Já não conversávamos mais, não dividíamos a mesma cama, nem jantávamos no mesmo horário a noite. Parecíamos dois estranhos vivendo sob o mesmo teto.

"Você nasceu, ela nem quis ver você na maternidade. Assim que recebeu alta pegou suas coisas e foi para a casa de seus pais. Sei que parte da culpa é minha, mas prefiro pensar que é melhor ela não querer você sabendo que você está vivo do que eu nunca ter visto você porque você estaria morto.

“Umas duas semanas fui comunicado por um advogado particular de que ela estava entrando com os papeis para solicitar o divórcio. Infelizmente tudo o que ela me disse que faria foi entre eu e ela e quase todos os meus acessos de nervos ela tinha uma testemunha para se opor a mim e fazer com que eu parecesse um tipico psicopata ciumento. O advogado dela conversou comigo e me apresentou dois caminhos: a) eu poderia brigar no tribunal e perderia a casa, o carro, o dinheiro no banco e ela ainda ficaria com a sua guarda só para que eu ficasse sem nada ou b) eu desistiria da casa, do carro, do dinheiro e poderia ficar com a sua guarda.

- Imagino qual foi a sua escolha...

- E não há um único dia que me faça me arrepender do que eu quis e briguei desde o inicio.

- Não imaginava que tinha sido assim. O senhor nunca fala dela. Da última vez que perguntei o senhor disse que ela havia ido embora e que seria melhor não perguntar de novo.

- Eu sei o que eu disse, mas não acho justo você continuar não sabendo. Só quero pedir um favor, tá?

- Certo.

- Não a odeie por isso. Na verdade é bom você não ficar digerindo muito essas informações, elas fazem mais parte da minha vida do que da sua vida, e eu já fiz as pazes com os meus fantasmas... não quero que eles assombrem você. Certo?

- Certo. Acho justo dizer que eu já sabia de algumas coisas...

- Sabia!? Como?!

- Vó Matilda...

- Ah...

- Mas...

- Mas?

- ... e a enfermeira do pronto socorro, pai?

Ele deu uma gargalhada gostosa, dessas que raramente vemos as pessoas fazerem.

- O que que tem ela?

- Ela é bonita, fala difícil, mas é bonita. Não é?

- É sim. O nome dela é Rachel. Com c e h mas se fala como se fosse com q.

- Está bem informado...

- Estava no crachá dela.

- Ela estava sem crachá!

- Estava no bolso...

- Por que não convida ela para sair? Vamos ter que voltar lá para tirar os pontos, não vamos?

- Vamos sim... Vou pensar no assunto...

- Mesmo?

- Mesmo...

Daquele dia em diante foi como se houvesse desaparecido uma barreira invisível, mas muito resistente entre eu e meu pai. É como se de certa forma minha mãe sempre estivesse presente entre nós na possibilidade de eu perguntar o que houve e na possibilidade de meu pai dizer qualquer coisa para não me deixar sem uma resposta plausível.

As feridas, minhas e do meu pai, cicatrizaram conforme tinham que ocorrer mais cedo ou mais tarde. Meu pai criou coragem e convidou a enfermeira, digo, a Rachel para sair. E embora eles tenham saído apenas como amigos no começo, não permaneceram neste estado por muito tempo.

Assim que me senti seguro novamente peguei o carrinho de rolimã e tentei fazer aquela mesma manobra.

- Pai! Rachel! Olha só o que eu vou fazer!

Eles estavam de mãos dadas na porta da mercearia. Era um domingo como outro qualquer.

Meu pai falou qualquer coisa, algo do tipo “não se arrebente de novo!”

Senti o vento no rosto, a sensação de liberdade, o coração acelerado, todos os músculos retesados aguardando o momento certo, a virada para a esquerda, o puxão no freio, a força correta, o pedaço de madeira com ponta de aço levando o carrinho para direção que eu queria, o carrinho completando o cavalinho de pau, a sensação difusa e ao mesmo tempo concreta de que após uma grande guinada o mundo sempre retornaria ao seu eixo de origem...

E então eu sorri.