sábado, 25 de agosto de 2012

... E assim se foi a infância



Eu não sei quem inventou aquilo, mas quem quer que tenha sido com certeza não imaginou que viraria uma febre de desejo de muitas gerações de meninos... E eu, como qualquer outro, queria um.

- Pai, me dá um carrinho de rolimã?

- O que?

- Um carrinho de rolimã!

- Rolemã?

- Não pai: ro-li-mã, não sabe? São aqueles carrinhos de madeira com rolamentos de carro de verdade.

- Aquilo não é pe-ri-go-so?

- É nada pai! Os garotos da rua de cima colocaram uns pedaços de pneus que servem de freio para o carrinho.

- Não sei não...

Quando meu pai falava “Não sei não...”, apesar de ser uma dupla negativa, era uma maneira gentil de dizer “não” mesmo. 

- O senhor pode pelo menos pensar no assunto?

- Posso.

- Promete?

- Prometo. Você já fez a sua lição de casa?

- Já sim senhor.

- Então pode ir brincar na rua, mas já sabe, né?

O que meu pai queria dizer era para que eu voltasse até as oito da noite e que não saísse além dos limites do bairro. Não que houvesse perigo após esse horário ou que eu fosse sair além do bairro, mas o meu pai sempre fazia questão de avisar o que ele não queria que eu fizesse. 

Só para ilustrar este comentário: lembro-me de que certa vez, ao invés de ir direto para casa após a aula, eu fui até a casa da minha avó Matilda, que na verdade não era minha avó, mas a pessoa que alugou a parte dos fundos de sua casa para nós durante um certo período e a quem me apeguei facilmente.

Dona Matilda, que foi como a mãe que não tive, apesar de ser uma senhora de uns sessenta anos, com muitos cabelos grisalhos, era de uma vitalidade incrível: enquanto muitas mulheres na mesma idade só sabiam falar de doenças, médicos e uma infinidade de enfermidades, ela era toda ativa, eloqüente e muito radiante.

Naquele dia eu a havia encontrado perto do mercado enquanto voltava da escola. Ela estava sozinha e carregava algumas sacolas de papelão. Provavelmente ela nem precisaria de mim para carregar aquelas compras, mas eu queria ajudá-la.

Acompanhei-a até sua casa e ela insistiu que eu esperasse um pouco para que almoçássemos juntos. Meu pai até que se virava bem na cozinha, dentro das limitações de um pai solteiro, mas a comida de uma senhora de sessenta anos que já cozinhava há umas três gerações era outra coisa. Não foi difícil decidir. Depois do almoço ficamos de papo furado por um bom tempo.

Quando voltei para casa, que era uma pequena casa agregada aos fundos de uma mercearia que meu pai havia comprado há pouco mais de um ano, foi que percebi que já passava das cinco da tarde.

Havia uns três clientes na loja, por isso ele apenas me olhou e disse que assim que fosse possível iria conversar comigo. A primeira coisa que me veio a mente foram palavras que já tinha ouvido anteriormente:

- Assim que sair da escola primeiro passe em casa. Depois rua, certo?

Meu pai não é desses que ficam ameaçando: “não faça isso senão eu vou fazer aquilo”, “não faça aquilo senão eu vou fazer isso”... era “não faça” ou “faça” e pronto.

Pouco depois ele entrou no meu quarto e perguntou se eu tinha dever de casa e eu respondi que sim. Pediu para que eu o fizesse e permanecesse no meu quarto para pensar melhor sobre o que eu tinha acabado de fazer. Fiz o dever em uma hora e imaginei que ficaria no quarto até que a mercearia fechasse, que era por volta das oito da noite. E assim ocorreu.

Eu estava morrendo de vontade de ir ao banheiro, mas para isso eu precisava passar pela mercearia e possivelmente me deparar com meu pai. Estava tão arrependido que optei por não ir.

Oito horas: ouvi o barulho da porta de aço sendo baixada e os estalos dos disjuntores ao desligar as luzes da loja.

A boca foi adquirindo um sabor amargo e inevitavelmente comecei a tremer. Eu já havia apanhado do meu pai uma vez. Cinco lambadas de cinta nas pernas... E isso doi. Doí! Doí demais!! O suficiente para se lembrar por um bom tempo.

Ele entrou pelo quarto e ficou me olhando nos olhos. Não resisti muito tempo e desviei o olhar.

- E, então, Henrique... o que tem a me dizer?

- Que deveria ter vindo direto para casa, pai, depois da escola... Mas encontrei a vó Matilda saindo do super mercado e ajudei ela com as compras até em casa, depois almocei lá e... e... acabei esquecendo da hora... Me desculpa pai!

- “Me desculpa, pai...” - ele sussurrou. – Tente imaginar o que é ficar aqui trabalhando, fazendo contas, sorrindo para os clientes, enquanto eu não tenho a menor idéia de onde está o meu filho? Sabe quanta coisa ruim se passa na cabeça numa horas dessas Henrique? Como é que você acha que eu iria receber a noticia caso alguma coisa ruim acontecesse?

- Desculpa, pai...

- Eu desculpo, mas isso não pode passar em branco. Desce as calças e põe as mãos na parede.

- Desculpa... pai...

- Obedece, Henrique!

Desci as calças e encostei as mãos na parede e mal dobrei o tronco quando ouvi uma explosão contra a parede logo acima da minha cabeça. Ele não me bateu, mas deu uma cintada na parede, provavelmente com toda a força que possuía.

- Se isso acontecer de novo, serão três lambadas destas, sem choro nem vela. Entendeu?

Balancei a cabeça positivamente.

- Pode se vestir.

Quando abaixei para subir a calça percebi que todo o xixi que eu tinha segurado havia escorrido pelas minhas pernas. Meu pai viu aquilo e disse para que eu fosse tomar um banho. Quando voltei do banheiro percebi que seus olhos estavam vermelhos. Ele nunca disse nada e nem eu...

- Henrique, você está me ouvindo?

- Estou sim pai! Só no bairro e em casa até as oito, certo?

- Certo.

Os garotos da rua de cima começaram uma nova modinha umas três semanas depois desse pequeno incidente entre eu e meu pai: carrinhos de rolimã. São feitos com uma prancha de madeira resistente o suficiente para sustentar o peso de quem os conduziam, dois eixos -um traseiro outro dianteiro- e rodinhas de rolimã... simples assim.

Os primeiros modelos tinham duas rodinhas pequenas atrás e uma grande na frente. Os garotos cortavam pedaços de pneus de carros e prendiam em cada um dos lados do eixo da frente para servir de freio. Mas descobriram rápido demais que frear o carrinho daquele jeito não era nada emocionante.

Em menos de uma semana já haviam acrescentado aos carrinhos algumas mudanças que os deixavam mais interessantes: agora possuíam duas rodinhas atrás e duas na frente, isso os deixavam mais estáveis e mais velozes. Na lateral da prancha, protegido por uma ponteira de metal, foi colocado um pedaço de pau que lembrava muito um freio de mão, que quando acionado além de ajudar o carrinho a dar um cavalinho de pau ainda dava um efeito diferente pois saia faísca. Não usavam mais o freio a base de pneu.

Durante a primeira semana tudo o que fiz foi observar os outros brincarem. Todos os garotos tinham carrinhos de rolimã, menos eu. Nunca pedi emprestado porque sabia que eles não emprestariam. Havia uma regra entre os garotos da minha época: se você não pode emprestar o seu, não peça o dos outros. O que no meu caso significava que como eu não tinha, também não tinha direito de andar no de ninguém.

Mas isso não me impedia de imaginar as sensações: o vento batendo no rosto a medida que a velocidade aumentava, a falta de orientação após o cavalinho de pau, a inevitável risada ao subir a ladeira e os planos do que fazer ao descer novamente.

Na metade da segunda semana deixei de sair para a rua após fazer a lição de casa. No dia seguinte meu pai percebeu que alguma coisa não ia bem e veio conversar comigo.

- O que você tem Henrique?

- Não é o que eu tenho, pai, é o que eu não tenho...

- E o que você não tem, Henrique?

- Um carrinho de rolimã.

- Ah...

- Todo mundo tem um, pai! Todos os garotos desta rua, da rua de cima, da rua do lado e de outras ruas... Menos eu! E ninguém empresta!

- Então porque todo mundo tem um você acha que você deve ter um também?

- É por ai...

- É por ai? E isso lá é resposta decente?

- Não...

- Então pensa melhor no por quê eu tenho que te dar um carrinho de rolimã, e depois a gente conversa.

- Ah, pai!

- Sem “ah, pai!”, vai brincar Henrique.

Mas eu não fui. Fiquei aquele dia em casa, e o dia seguinte, e o seguinte do seguinte e o resto da semana. Então ele veio com uma nova:

- O que você acha de ganhar um vídeo-game?

- É mais caro que um carrinho de rolimã.

- Sim, mas você não quer um vídeo-game?

- Não este ano. Quero um carrinho de rolimã.

- Você não vai desistir tão fácil, né?

- Não...o que o senhor prefere: que eu passe o resto dos dias em casa ou que brinque na rua como uma criança normal?

Meu pai me olhou com certa curiosidade.

- O senhor queria uma resposta decente... eu fiz uma pergunta decente!

- E onde você vai arrumar as rodinhas?

Só de ouvir esta pergunta eu já fiquei todo radiante.

- Nos mecânicos do bairro.

- Certo... Quando você tiver as rodinhas nós montamos um carrinho.

Por uma semana inteira, assim que voltava da escola e fazia a lição de casa, sai para procurar as rodinhas de rolimã. Era mais difícil do que imaginava. Todos os mecânicos tinham a mesma resposta:

- Fulaninho já passou por aqui e levou as que eu tinha.

- Ciclano pegou as ultimas ontem.

- Dei para Beltrano a única que sobrou.

Contei para o meu pai sobre a dificuldade de encontrar as rodinhas e ele se limitou a dizer:

- Sem rodinhas, sem carrinho.

Sinceramente não tinha mais vontade nenhuma de sair à rua e ficar vendo os outros se divertirem sem que eu pudesse fazer o mesmo. Chegava da escola, almoçava e fazia a lição de casa. Ligava a televisão e ficava assistindo desenho a tarde inteira.

Aquilo realmente começou a incomodar o meu pai.

- Você vai ficar na frente da TV a tarde inteira todos os dias?

- Se o senhor tivesse me dado o vídeo-game não seria diferente, seria?

- Talvez...

No sábado seguinte meu pai me acordou e colocou um aviso na porta da mercearia dizendo que só abriria após as treze horas. Pediu para que eu me trocasse porque nós iriamos sair. Tirou a Brasília branca da garagem e saímos.

- Onde vamos, pai?

- Resolver um problema.

Naquela manhã meu pai e eu fomos em tantas oficinas mecânicas que depois da décima eu parei de contar. Era quase meio dia e ainda não tínhamos as quatro rodinhas. Percebi que fazíamos o caminho de volta para casa. Quando chegamos meu pai disse que eu nem precisava descer do carro. Ele entrou na mercearia e depois de cinco minutos saiu com um papel na mão e colou na porta de aço:

“EXCEPCIONALMENTE HOJE
NÃO ABRIREMOS”

- Pai?

- A gente não volta para casa enquanto não achar essas rodinhas, certo?

- Certo.

O fato de querer ter um carrinho de rolimã foi responsável por uma das ocasiões mais incríveis da minha vida. Nunca até aquele dia havia passado tanto tempo do lado do meu pai. Almoçamos fora, entramos em todas as mecânicas que vimos abertas até que tivéssemos as quatro rodinhas do mesmo tamanho, fomos ao cinema e assistimos o De Volta Para o Futuro. Na volta acabei dormindo dentro do carro e ele me carregou até a cama.

Acordei com umas pancadas que vinham da frente da loja. Levantei-me e fui ver o que era. Meu pai estava sentado no chão da mercearia fixando o eixo traseiro no carrinho. E não era só isso. Enquanto o observava pelas costas, ele me contou que na época que eu ainda estava procurando as rodinhas ele usava a parte da manhã, que era quando eu estava na escola, para fazer as peças do carrinho.

- Pedi para o seu Carlos, o marceneiro, para cortar as madeiras e dar um trato na aparência. Ele conseguiu uma madeira bem resistente, por isso acho que o seu carrinho vai ser mais pesado do que o dos seus colegas... Ah, também pedi para ele pintar...

Meu pai se virou e me mostrou um carrinho preto com duas listras amarelas que o cruzava de ponta a ponta. Fez que ia me entregar o carrinho e recuou.

- Primeiro quero que me faça um favor.

- Qualquer coisa!

- Qualquer coisa mesmo?

- Qualquer!

- Por favor, vê se não vai se arrebentar em cima desse negócio!

- Pode deixar!

- Promete?

- Prometo.

- Mesmo?

- Pai...

É claro que todos os garotos queriam dar uma volta no meu carrinho, mas eu não deixava. No começo isso gerou um certo mal estar, mas criança esquece rápido essas coisas.

Por mais ou menos um mês e meio,todos os dias, eu saia para brincar com o carrinho. No começo ficava um pouco inseguro quanto ao uso do freio lateral, mas depois fui pegando a manha. Percebi que quanto mais rápido o carrinho estivesse e mais firme eu puxasse o freio maior era o giro.

Depois, começamos a empurrar o carrinho um dos outros para que pagássemos mais impulso. Um amigo apoiava a mão nas costas de quem estivesse estivesse no comando e começava a empurrar. Quando a rua começasse a inclinar ele parava e dali por diante, como soube anos depois, a física se encarregava do resto.

De certa forma a apreensão do meu pai foi apaziguando com o tempo, principalmente quando me via voltando para casa inteiro.

Uma vez enquanto jantávamos ele comentou:

- Você reparou que você está comendo bem mais do que antes?

- Sim... também estou ficando com a carne mais dura.

- Isso – ele riu – se chama músculos! Você está adquirindo músculos.

- Mas eu nem faço exercício!

- Você que pensa! Cada vez que você desce, você tem que trazer o carrinho até o topo da rua. Isso não deixa de ser exercício.

- Ah...

Foi num domingo, um domingo como outro qualquer, que, enquanto brincava na rua com o carrinho e meu pai estava sentado à porta da mercearia foleando o jornal, mal sabíamos que eu estava prestes a quebrar a minha promessa.

- Pai! Pai! Olha só o que eu sei fazer!

Ele fechou o jornal e ficou em pé.

Pedi para o Gabriel, que era o outro garoto que brincava comigo naquele dia, para que me empurrasse.

Meu pai falou qualquer coisa que não consegui ouvir.

Senti o vento no rosto, a sensação de liberdade, o coração acelerado, todos os músculos retesados aguardando o momento certo,a virada para a esquerda, o puxão no freio, a força demasiada, o pedaço de madeira com ponta de aço levantando o carrinho do chão, o carrinho não completando o cavalinho de pau, eu sendo arremessado para frente, o carrinho no ar seguindo a mesma trajetória, eu sentindo a cabeça e o ombro baterem com força no asfalto, o asfalto ralando a carne, outro baque na cabeça seguido de um clarão...


***


A enfermeira entrou na sala carregando uma maquina de cortar cabelo, entregou ao médico e saiu.

- Seu pai está lá fora, quer que eu o chame?

- Não... depois.

- Não precisa se preocupar – disse o médico, preparando-se para ligar a maquina e raspar uma parte do meu cabelo.

- Não estou preocupado. Pelo menos não comigo...

- Então com o quê?

- Com o carrinho...

O médico aplicou a anestesia e começou a dar os pontos.

- Quebrou?

- Acho que não, mas meu pai não vai deixar que eu ande de novo.

- Vai sim.

- Fala isso por que não o conhece.

- Bem... aqui em cima já resolvemos o problema... vamos ver como vai ficar este ombro.

O ombro estava horrível. Enquanto vinhamos para o pronto socorro meu pai mal conseguia prestar atenção no caminho. Toda hora ele olhava para o meu braço, balançava a cabeça e perguntava a mesma coisa:

- Tá doendo muito, filho?

- Não, pai.

O médico pegou uma tesoura e cortou a lateral da minha camiseta. Tirou-a do meu corpo e, jogando-a no lixo, pediu para que eu lavasse o machucado com um sabonete que estava perto da cuba de metal. Apenas a idéia de encostar a mão próxima ao machucado já o fazia doer. Virei-me para o medico:

- Acho que não consigo sozinho...

- Vou pedir para que uma enfermeira o ajude. Enquanto isso vou falar com o seu pai, ele deve estar preocupado.

- Doutor, faz um favor?

- Sim?

- Não deixa ele mais preocupado do que já deve estar, tá?

Ele me lançou um sorriso e saiu da sala. Logo em seguida a enfermeira entrou. Ela calçou as luvas descartáveis, colocou a mascara no rosto e sentou-se próxima à cuba.

- Venha aqui mocinho!

De um jeito muito delicado ela molhou o pano e passou-o primeiro pelo meu braço limpando os resíduos do que estava no asfalto e se apegaram à minha pele. Vez ou outra quando parecia que ela ia passar o pano úmido sobre a ferida instintivamente eu recuava o braço.

Se você não olhar ajuda mais.

- Gostaria, mas sou curioso demais...

- Vou colaborar então: fecha os olhos e eu narro: estou higienizando a região periférica da escoriação para evitar que qualquer sujeira infeccione o machucado. Depois vou cuidar da ferida em si. Primeiro vou umedecer uma gaze com água oxigenada e repousá-la sobre o machucado; enquanto ela age a área da ferida soltará pequenas bolhas. Você sentirá uma leve ardência, mas nada muito forte.

- Não dá para anestesiar que nem os pontos na cabeça?

- Não é recomendado, a região é muito extensa e você vai ter que fazer isso em casa cedo ou tarde e lá não terá anestesia.

- Verdade...

- O maior problema é o lugar do machucado. Essa área aqui – e ela assinalou o ombro e parte do braço direto com o indicador – tem muita mobilidade no dia a dia: levantar ou abaixar o braço, coçar qualquer parte do corpo, um simples gesto para pegar qualquer coisa ou escrever faz com que você exercite esta área, o que não é bom nessa situação.

- Como assim?

- Para que sua pele comece a se recompor, o sistema de defesa do seu organismo, expelirá, através do ferimento, um líquido com propriedades de cicatrização e proteção. Quando este liquido estiver secando, ele irá enrijecer esta parte do tecido cutâneo e dificultar a movimentação do mesmo...

- Moça?

- Sim!

- Eu só tenho dez anos, facilita a explicação!

- Vai acontecer como qualquer outro machucado!

- É a primeira vez que me machuco.

- Você nunca se machucou?

- Não.

- Nunca cortou o dedo? Furou o pé? Arranhou a pele?

- Nada. É a primeira vez.

- Nossa, que estréia, heim? E você nem está chorando!

- P'ra senhora ver!

- Resumindo: essa ferida vai se tornar uma uma casquinha protetora e isso vai dificultar a movimentação do seu braço. Ela vai coçar e não é para coçá-la. Você vai ter vontade de arrancar e não é para arrancá-la. Também não pode por nada por cima até que a casquinha esteja formada, caso contrário o seu machucado vai grudar na camiseta, aí sim, mocinho, você vai chorar para arrancar. Entendeu?

- Entendi.

- Acho que você vai ficar de molho por um tempinho, quero dizer, provavelmente você não vai à escola esta semana.

- Nossa! Não tinha pensado nisso.

-Pois é!

Ela terminou de limpar o machucado e disse que já estava quase pronto. Perguntou se o doutor Fábio já tinha aplicado a antitetânica e eu disse que não.

- Vou chamá-lo. Continue comportado aí mocinho.

Quando a porta se abriu meu pai estava junto desta vez, mas o semblante de seriedade e preocupação que ele tinha no rosto quando chegamos ao pronto-socorro já havia desaparecido. Ele começou a conversar com a enfermeira que havia feito a “higienização da escoriação” e o doutor Fábio se dirigiu diretamente para um armário branco com portas de vidro e de lá retirou uma seringa descartável e uma ampola do bolso do jaleco branco.

- Você, rapazinho, tirou tudo de letra até agora. Só vou aplicar isso aqui e já era!

Naquela tarde ao voltarmos do pronto-socorro me desculpei com ele por não manter a promessa de não me machucar. Ele disse que só havia feito eu prometer para que eu fosse mais cuidadoso do que de costume, mas que estava tudo bem. A pergunta sobre o carrinho estava na ponta da língua, mas achei que aquela não era a melhor hora.

No dia seguinte meu pai foi até a escola levar o atestado. Como não tinha nada para fazer, fui junto. Ele queria que eu esperasse dentro da brasília, mas disse que queria esticar as pernas um pouco e ele não fez objeções.

A conversa com a diretora foi rápida. Ele se dirigiu até a secretaria, solicitou conversar com a responsável pela turma da quinta série, a diretora Maria Estella o atendeu, meu pai explicou o ocorrido e entregou o atestado. 

- Muito obrigada pela consideração, Sr. Kauffman.. Mas se me permite uma pequena observação: quem cuidará dos interesses pessoais e escolares do Henrique enquanto o senhor estiver trabalhando?

- Dos pessoais cuido eu com sempre cuidei, quanto aos escolares estou aberto a sugestões. A senhora apresenta alguma?

Ela ficou ligeiramente sem graça.

- Vou conversar com os professores do Henrique para ver o que pode ser apresentado e entrarei em contato com o senhor.

- Obrigado.

A conversa não durou mais do que dez minutos. Meu pai não entrou em detalhes e não deu abertura para perguntas. Quando meu pai queria, o que poderia ser uma grande conversa tornava-se um rápido dialogo.

- Pai, o que o senhor vai fazer com o carrinho?

- Nada. Ele vai ficar lá esperando que você melhore para ser usado novamente.

Aquilo realmente me surpreendeu.

- Não esperava por isso, não é mesmo? – disse ele.

- Não mesmo.

- Acredito que não adianta ficar mentindo para mim mesmo. Você está crescendo. Hoje são carrinhos. Amanhã serão garotas. Logo você estará saindo com seus amigos e voltando de madrugada... Se eu não me conformar com isso ou tenho um enfarte ou faço de você um prisioneiro. Quer almoçar fora hoje?

- E a mercearia?

- Decidi não abrir hoje.

- Vamos comemorar alguma data importante?

- Nada especial. Quer ou não?

- Mas é claro que sim!


***

Os dias seguintes passaram-se tranqüilamente em nossas vidas. Religiosamente meu pai abria a mercearia às oito da manhã, varria a área de circulação dos clientes, passava um pano umedecido com desinfetante e colocava o carpete na porta da loja. Lembro-me de certa vez ter perguntado a ele o porque o carpete não tinha o nome da loja, que era o mesmo que o nosso sobrenome. Ele disse que a idéia de que alguém possa vir a limpar os pés no seu nome não era lá muito agradável.

Até que os clientes chegassem não havia muito o que fazer, então ele abria um jornal do dia ou alguma revista da semana e ia os devorando até que fosse interrompido. Quando muito, para esticar as pernas ou movimentar o corpo, ele varria a loja novamente, mesmo sem necessidade. Aos poucos fui percebendo o quanto o meu pai tinha uma vida reservada, pra não dizer solitária.

Normalmente eu passava o dia fora, parte na escola, parte na rua e nesses dois lugares estava cercado de amigos ou me divertindo de alguma forma; mas meu pai ficava a maior parte do dia cercado de pessoas com quem não tinha a minima intimidade ou que se fosse um pouco mais próximo era para falar sobre o novo reajuste da gasolina ou o resultado de alguma partida de futebol.

Cloquei os braços sobre o balcão e após cruzá-los apoiei o queixo sobre eles.

- Pai? Posso fazer uma pergunta?

- Manda.

- Por que o senhor não se casa novamente?

Ele me olhou com certa curiosidade.

- Por que? Está sentindo falta de mais alguém por aqui?

- O senhor está me devolvendo a pergunta...

- Eu sei... Nunca pensei em me casar novamente. Namorar?... talvez! Mas me casar novamente?, eu acho que não.

- O senhor não se sente sozinho?

- Sozinho? Não! Tenho você, ora!

- Sabe que não foi isso que quis dizer.

- Sei, sim. Não, não me sinto sozinho. Por que toda essa preocupação repentina, Henrique?

- Não sei, mas o senhor está novamente me devolvendo a pergunta...

- Vem cá, meu filho. Deixa eu tentar explicar umas coisa para você: você vai querer uma conversa de pai para filho ou de homem para homem?

Dei a volta pelo balcão e me sentei ao seu lado.

 Homem para homem... pode ser?

- Seu avô, como você sabe, faleceu antes de você nascer. Era um homem bom, trabalhador e esforçado. Não havia um dia em que ele não acordasse já pensando na manhã seguinte. Ele era um desses homem com olhos só para o futuro. Trabalhava hoje sempre com o pé no amanhã. Não digo que isso seja errado, mas eu e a sua avó vivíamos sempre no presente. E mesmo quando meu pai estava conosco, era como se não estivesse. Nunca tinha tempo para mim ou para minha mãe. Não me lembro de um dia sequer em que ele tenhamos saído todos em família, ou ao menos uma vez que ele tenha saído com a minha mãe.

“Ela nunca reclamou, mas seu descontentamento era tão visível quanto o meu. Mas o senhor Magno Kauffman estava sempre ocupado demais para perceber. Conforme fui crescendo percebi que aquele estilo de vida não tinha a menor possibilidade de ser o meu estilo de vida. Como filho único ele queria que eu estudasse, fizesse administração e assumisse a concessionária de automóveis como seu legitimo herdeiro. Só que eu não tinha a menor vontade de fazer isso. Sem falar na falta de vocação para lidar com vendas.

“Então discutíamos muito sobre este assunto. Muito mesmo! E por mais que duas pessoas se gostem elas não conseguem ficar juntas enquanto tem pontos de vista extremamente opostos. Como na época eu não trabalhava e era ele quem me sustentava aceitei pelo menos a proposta de fazer administração. Conheci sua mãe na faculdade e começamos a namorar.

“Uns três anos e meio depois seu avô faleceu de ataque cardíaco e precisei largar a faculdade para cuidar da obra dele. Mamãe também ficava a maior parte dos dias sozinha em casa e acabou por se entregar a uma profunda depressão que a consumiu em menos de seis meses.

“Eu já não gostava de trabalhar lá, e sem ter quem me obrigasse por laços de sangue é que não trabalharia mesmo. Consultei um bom advogado, fizemos pesquisas de mercado e optei por vender a concessionária e a casa de meus pais. Comprei uma nova casa, um carro decente e pedi sua mãe em casamento.

“Parte do dinheiro que sobrou eu investi em terminar o curso de administração, pois ainda que não gostasse já tinha feito mais da metade do curso. E a outra parte deixei no banco rendendo, o que não era muita coisa.

“Depois que me formei arrumei um emprego de meio período como gerente de um super mercado de bairro e sua mãe em uma fábrica de cosméticos. De certa forma tudo ia bem e estávamos felizes. Bem... pelo menos eu pensava assim.

“Um dia ela chegou em casa com um ar de preocupada e eu achei que ela tinha sido demitida. Então ela me mostrou um papel branco do médico dela dizendo que ela estava gravida. Eu mal cabia em mim, mas ela não participava da mesma felicidade. Disse que estava prestes a ser promovida na empresa, que o mercado de trabalho já prejudicava a mulher por ser do sexo frágil, que por causa da gravidez qualquer outro homem menos qualificado assumiria o cargo, que discutíssemos a possibilidade de um aborto...

- O que é isso?

- É uma forma questionável de interromper a gravidez antes da formação completa do feto.

- Interromper... Matar!

- Mais ou menos isso, mas sem que o feto tenha a consciência de que está morrendo.

- Como é que uma pessoa morre sem saber que está morrendo?

- Essa é a questão: um feto não chega a ser uma pessoa, não tem um cérebro formado com idéias pré concebidas a ponto de criar conceitos e se defender sem auxilio. Por isso o governo proíbe esta pratica.

- E o senhor?

- Bem... aquilo me deixou estarrecido. Por dois motivos: primeiro porque eu realmente amava sua mãe e segundo porque sem perceber me casei com alguém que era igualzinho ao meu pai, só que de saias. Conversamos muito sobre não fazer um aborto e quando ela disse que faria de qualquer jeito, pois naquele momento ela não poderia perder aquela oportunidade, eu juntei todos os exames e disse que se alguma coisa acontecesse com o bebê que ela carregava ela responderia por isso judicialmente e se a justiça não abrandasse a minha ânsia ela responderia por isso de uma forma não muito agradável.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que quando um homem está de cabeça quente fala o que não deve e faz o que não pode.

- Não entendi.

- Resumindo eu ameacei a sua mãe, disse a ela que ela não ficaria viva para se arrepender do que queria fazer. Sei que não deveria ter dito isso, muito menos gritando com ela, muito menos no escritório da empresa que ela trabalhava, muito menos na frente do chefe dela...

- Pai!

- É... eu sei, eu sei... Mas eu precisava de garantias de que sua mãe não cometesse nenhuma besteira quando eu não estivesse por perto. Então achei que expondo quem ela realmente era onde ela trabalhava as pessoas iriam olhar para ela com mais atenção. De certa forma funcionou, você está aqui, não é?

“Mas daí em diante a relação só rolou morro abaixo. Já não conversávamos mais, não dividíamos a mesma cama, nem jantávamos no mesmo horário a noite. Parecíamos dois estranhos vivendo sob o mesmo teto.

"Você nasceu, ela nem quis ver você na maternidade. Assim que recebeu alta pegou suas coisas e foi para a casa de seus pais. Sei que parte da culpa é minha, mas prefiro pensar que é melhor ela não querer você sabendo que você está vivo do que eu nunca ter visto você porque você estaria morto.

“Umas duas semanas fui comunicado por um advogado particular de que ela estava entrando com os papeis para solicitar o divórcio. Infelizmente tudo o que ela me disse que faria foi entre eu e ela e quase todos os meus acessos de nervos ela tinha uma testemunha para se opor a mim e fazer com que eu parecesse um tipico psicopata ciumento. O advogado dela conversou comigo e me apresentou dois caminhos: a) eu poderia brigar no tribunal e perderia a casa, o carro, o dinheiro no banco e ela ainda ficaria com a sua guarda só para que eu ficasse sem nada ou b) eu desistiria da casa, do carro, do dinheiro e poderia ficar com a sua guarda.

- Imagino qual foi a sua escolha...

- E não há um único dia que me faça me arrepender do que eu quis e briguei desde o inicio.

- Não imaginava que tinha sido assim. O senhor nunca fala dela. Da última vez que perguntei o senhor disse que ela havia ido embora e que seria melhor não perguntar de novo.

- Eu sei o que eu disse, mas não acho justo você continuar não sabendo. Só quero pedir um favor, tá?

- Certo.

- Não a odeie por isso. Na verdade é bom você não ficar digerindo muito essas informações, elas fazem mais parte da minha vida do que da sua vida, e eu já fiz as pazes com os meus fantasmas... não quero que eles assombrem você. Certo?

- Certo. Acho justo dizer que eu já sabia de algumas coisas...

- Sabia!? Como?!

- Vó Matilda...

- Ah...

- Mas...

- Mas?

- ... e a enfermeira do pronto socorro, pai?

Ele deu uma gargalhada gostosa, dessas que raramente vemos as pessoas fazerem.

- O que que tem ela?

- Ela é bonita, fala difícil, mas é bonita. Não é?

- É sim. O nome dela é Rachel. Com c e h mas se fala como se fosse com q.

- Está bem informado...

- Estava no crachá dela.

- Ela estava sem crachá!

- Estava no bolso...

- Por que não convida ela para sair? Vamos ter que voltar lá para tirar os pontos, não vamos?

- Vamos sim... Vou pensar no assunto...

- Mesmo?

- Mesmo...

Daquele dia em diante foi como se houvesse desaparecido uma barreira invisível, mas muito resistente entre eu e meu pai. É como se de certa forma minha mãe sempre estivesse presente entre nós na possibilidade de eu perguntar o que houve e na possibilidade de meu pai dizer qualquer coisa para não me deixar sem uma resposta plausível.

As feridas, minhas e do meu pai, cicatrizaram conforme tinham que ocorrer mais cedo ou mais tarde. Meu pai criou coragem e convidou a enfermeira, digo, a Rachel para sair. E embora eles tenham saído apenas como amigos no começo, não permaneceram neste estado por muito tempo.

Assim que me senti seguro novamente peguei o carrinho de rolimã e tentei fazer aquela mesma manobra.

- Pai! Rachel! Olha só o que eu vou fazer!

Eles estavam de mãos dadas na porta da mercearia. Era um domingo como outro qualquer.

Meu pai falou qualquer coisa, algo do tipo “não se arrebente de novo!”

Senti o vento no rosto, a sensação de liberdade, o coração acelerado, todos os músculos retesados aguardando o momento certo, a virada para a esquerda, o puxão no freio, a força correta, o pedaço de madeira com ponta de aço levando o carrinho para direção que eu queria, o carrinho completando o cavalinho de pau, a sensação difusa e ao mesmo tempo concreta de que após uma grande guinada o mundo sempre retornaria ao seu eixo de origem...

E então eu sorri.