quarta-feira, 24 de abril de 2013

Os Seis Cisnes

   

Certa vez, um rei caçava numa grande floresta e perseguia a caça com tal empenho que nenhum dos componentes do seu séquito conseguia acompanhá-lo. Quando anoiteceu, o rei deteve-se, olhou a sua volta e percebeu que estava perdido. Procurou um caminho para sair da floresta, mas não o encontrou. Nisso viu aproximar-se uma figura trajada em um manto negro, caminhando lentamente em sua direção. Apesar da roupa que a trajava, o rei percebeu que se tratava de uma mulher velha.

- Boa mulher - disse o rei - não poderia indicar-me o caminho através da floresta, caso o saiba?

- Oh, sim majestade, poderia - respondeu ela com uma voz rouca e suavemente melancólica - poderia sim, naturalmente. Mas com uma condição.

- E qual seria?

- Antes de dizer, é bom que saiba que se não a cumprir ficará perdido por aqui e cedo ou tarde morrerá de fome, sendo esta floresta e esta paisagem o seu túmulo.

O rei a fitou com um olhar surpreso que rapidamente se tornou colérico; deu um passo para trás e, soltando a besta, que segurava em sua mão direita, com a mesma agarrou a empunhadura de sua espada. Era uma bela arma de combate, forjada em Toledo, então capital da Hispânia. Um mestre ferreiro havia dado como presente de posse ao primeiro monarca da família, há uns três seculos, que por sua vez passou para seus sucessores até que chegasse a mal do atual rei. Era, hoje, muito mais uma espada cerimonial que bélica.

- Tsk, tsk, meu rei, não é através do uso da violência que se consegue soluções. Os bárbaros, os desesperados, os irracionais se portam assim. Alguns até têm suas razões para agirem assim, mas só porque não têm escolhas. Vossa majestade - disse a velha em tom de ironia - é um rei, vindo de uma geração de nobres, dotadas de homens inteligentes... Não creio que, apesar de tudo, vossa majestade não consiga dominar os seus impulsos mais primitivos e destrutivos, principalmente diante de uma velha indefesa, como eu, que esta oferecendo a vossa majestade uma opção.

Quem é essa maltrapilha velha, pensou o rei, para me impor algo!, sou eu que imponho algo a alguém em meu território e tem sido assim há vinte e dois anos.

E de fato era, desde que recebera, pouco antes da morte de seu pai, aos vinte anos, o controle de todas as terras e províncias que lhe cabia por direito. E reinara com severidade sobre tudo que lhe pertencia, inclusive sobre tudo que estava sobre o que lhe pertencia.

- E então meu bom rei, o que vai ser?

- Não tem o direito de me impor nada. Nada, ouviu!? Eu sou a ordem, eu imponho, eu sou a lei!

- Lei!? - e explodiu numa risada estrondosa, como se um bando de gralhas saíssem das arvores, repentinamente em uma madrugada silenciosa. - O que é a lei, ainda que estática em sua expressão, senão um conceito, volúvel e maleável, no qual seus conselheiros, cínicos e hipócritas, que primeiramente tendem a defender seus próprios interesses, se debruças para elaborá-la? Que moral, que escrúpulos têm quem as fazem? Vocês deveriam pagar em vida seus pecados e não no inferno... Rá!, e pensam que são livres...

- Meu povo é livre! - disse o rei com certa indignação.

- Não, não o são não. Pensam que são livres, apenas porque ainda vivem, mas no fundo todos sabem que estão cercados pelas leis que os limitam como se fossem gaiolas invisíveis. Sabem que a liberdade não mede nem a largura de seus braços. Sabem que a maior parte das leis são banais, absurdas, elaboradas por gente com interesses escusos.

- N-não é verdade minha senhora - disse o rei entre um soluço e outro, tendo a impressão de que algo além do seu poder e conhecimento estava ocorrendo ali. Uma poderosa sensação de que estava diante não de uma mulher velha, mas sim de uma bruxa o invadiu e o dominou. - As leis são elaboradas para criar uma ordem, a qual uma sociedade respeite e edifique-se para que possa deixar novos descendentes. Esses novos cidadãos, desde pequenos, já estarão sendo criados em convivência com as leis em vigor, leis que seus pais obedeciam, tendo assim maior facilidade para assimilá-las. As leis funcionam como limites que estabelecem, por exemplo, uma linha, a qual nenhum individuo poderá passar, pois se assim o fizer não só será responsável pelos seus atos, como também punidos por eles.

- Meu rei, se assim fosse nada mais seria necessário que os dez mandamentos. O surgimento de novas leis só demonstra que não é impondo e punindo que a ordem emergirá e todos passarão a respeitá-la. Se leis funcionam como limites que estabelecem uma linha que nenhum indivíduo poder passar, pois se assim o fizer será responsável pelos seus atos, por outro lado é, pois, mais que um incentivo a não serem respeitadas, por que todo ser, a medida que evolui intelectualmente, rompe com seus próprios limites, e, por que não?,quando se acharem capacitados para tal feito, romper com os limites que lhe fora imposto, uma vez que foram criados - tanto os limites como os homens que os estabeleceram - por outros homens que se acharam capazes ou foram levados a crer que eram capazes de criá-los?

O rei a olhava com um misto de sentimentos enquanto ouvia sua palavras: medo, ora surpresa, ora raiva, ora admiração. Certo era que aquela velha não era uma plebeia e muito menos pertencia a nobreza, pois saberia. Sim!, só poderia ser uma bruxa.

- Cansei-me - ele continuou - meu rei, já nem sei o que digo. Adeus!

- Não! - gritou o rei antes mesmo que a bruxa se virasse. - Espere! Eu estarei de acordo com o seu pedido - seja lá qual for, pensou o rei consigo mesmo.

A velha, que ainda mantinha o capuz sobre a cabeça e o corpo coberto pelo manto negro e maltrapilho, olhou para ele sorrindo maliciosamente a formar em seus lábios um desenho irreconhecível e escarlate, apanhou um pedaço de pau ao chão, cuja forma logo se fez a de um cajado, disse-lhe:

Bem sei que todos nós temos nossas própria necessidades, ainda que sejamos todos iguais na forma física por dentro e por fora, mas não o somos em nossos corações. Há corações que esbanjam maldades, outros tão bons que sofrem até quando os maus são punidos... Portanto, como vossa majestade, estava a caçar, não hei de lhe tirar este prazer, não seria justo... Entretanto, acrescentarei apenas um novo objetivo a ela. Para o qual, estará claro, que não vou ficar atrás da vossa majestade o tempo todo, pois não sou uma caçadora tão exímia quanto a vossa majestade e, por isso, poderei espantar a presa. E, sendo assim se eu proceder, devida a minha irresponsabilidade, serei eu a causa do seu fracasso e, consequentemente, estarei obrigada a deixa-lo livre. Sabem que vossa majestade, de acordo com que já me disse, está livre. Assim passo eu a ser apenas a linha, imaginária, que se assemelha a uma lei que a sua pessoa ousou ultrapassar.

- Saiba, minha cara, que reis estão acima das leis. E até onde eu saiba não desrespeitei nenhuma lei.

- Ah... cruzou os meus domínios, e, estando como estamos, já é razão suficiente para que eu o puna.

- Isso é absurdo. Absurdo!

- Não tanto quanto impor aos seus servos que se curvem diante de sua presença e puní-los se o não fizerem. Não tanto quanto jus primae noctis, que favorece os nobre e envegonha e humilha ainda mais os humildes. Não tanto quanto cobrar impostos de uma forma tão desproporcional a manter as castas sociais de uma forma que não possam ascender a outra de forma alguma. Percebe que certas leis não servem para nada? Percebe que quem está acima delas as poderá infringir como se nunca tivesse feito pate da coisa em si ou agir de maneira inescrupulosa como se a maldade fosse uma bondade às avessas que, às vezes, se mascara quando não que ser descoberta.

O rei a olhava incrédulo. Nunca em toda sua vida havia visto alguém falar daquela maneira com algum soberano, fosse ele, seu pai ou outro qualquer. Ela continuou.

- Suponha que vossa majestade se encontrasse com outro rei. E ele lhe exigisse, estando ele em seu pŕóprio território, que se se curvasse. Sendo vossa majestade como é, provavelmente não o faria, e se o outro monarca fosse tão impiedoso quanto, provavelmente lhe mandaria ao carrasco para que o cortasse a cabeça ou o enforcasse em praça pública. Exatamente como vossa majestade procede em casos similares.

- Absurdo! Absurdo! - protestou o rei. - Entre nós, monarcas e soberanos, existe outro tipo de protocolo! Onde já se viu perder a cabeça por algo similar - comentou o rei indignado.

- Como pode perceber, majestade, certas penas também são incoerentes devido a desproporção quando aplicadas em relação ao ato praticado. Se vossa majestade e os seus precisam de lei para se respeitarem e para conviverem uns com os outros, embora eu seja contra isso, pois respeito e convivência só se adquirem através da experiência e não, nunca, pela imposição, é melhor que todos sem excessao alguma estejam submissos a ela e ninguém acima dela. A igualdade, vossa majestade, deve vir de cima para baixo e não inverso, uma vez que a tendência natural dos seres sejam se espelhar e seguir aqueles que se sobre sobressaem. O povo é reflexo do seu reinado, do que se passa dentro das dependências do palácio. Julgá-los e puní-los por isso é não concordar o que vossa majestade representa e ou pior: não ter consciência deste fato.

O rei há muito havia emudecido. Seus olhos acompanhavam cada movimento de braços e caminhada que a velha bruxa fazia. Da sua parte não tinha mais a dizer, ela que, se quisesse, continuasse a falar.

- Voltemos a questão da caça: o que é que eu terei que caçar? - perguntou o rei ansiosamente.

- Um coração que seja puro, desprovido de todas as maldade. Deve me traze-lo vivo, pois para o que quero, morto não serve.

- O que! Onde é que vou arrumar isso?

A bruxa não respondeu. Os  olhos do rei passearam entre a besta que estava caída aos seus pés e a espada empunhada na cintura. Não possuía armas que pudessem trazer uma presa viva... A não ser que fosse uma bem pequena... Mas o rei sabia que as menores geralmente são mais ágeis e, portanto, mais difíceis de se caçarem.


- Ah, estava quase me esquecendo - disse a bruxa - é óbvio que não terá uma eternidade para fazer o que lhe pedi. Creio que dois dias é mais que suficiente para descobrir se é capaz de realizar a tarefa. Para isso, vou lhe dar esta sacola. Dentro dela você encontrará água e alimento, que lhe serão suficientes por este tempo, e, para provar que não sou injusta, não importa o quanto coma, não lhe faltará alimento e água. Mas só por dois dias. Ao cair da noite do segundo dia, eu virei até você, e requererei da tua mão o que lhe pedi. Se não tiver conseguido deixarei que você veja que a floresta cresce e se torna mais densa cada vez que dela queira escapar.

Dito isto, a velha virou-se lentamente e caminhou pela mata que logo a encobriu. Aflito o rei olhou ao redor, gritou pelo seu séquito, mas ninguém foi capaz de ouvi-lo. Caiu de joelhos no chão e chorou.

- Crueldade, crueldade - resmungava o rei para si mesmo. Após se reestabelecer e limpar as lágrimas agarrou a besta e a sacola e  pensou em partir para procurar o tal coração puro. Mas estava tão cansado que desistiu. Além do mais, pensou, estava escuro, e, à noite, seria uma presa fácil para qualquer animal grande. Procurou gravetos e folhas secas para fazer uma fogueira. Encontrando-os, tratou de limpar o solo ao seu redor para que quando a labareda já estivesse intensa o fogo não se alastrasse e incendiasse toda a floresta. Vestiu suas roupas do avesso e sujou-as da melhor forma que conseguiu, pois, com a aparência maltratada, poderia se passar facilmente por um andarilho e não ser atacado de pronto caso o pegassem de surpresa, vestido como um rei, enquanto dormisse.

Os raios do sol e os cantos dos pássaros acordaram-no. A fogueira se apagara há algumas horas, e vendo que dela não vinha nenhum indício de que isso não fosse verdade, pegou um punhado de cinzas com as mãos e passou-as nas roupas, face e cabelos. Quando supôs que sua aparência nem de longe se parecia com um nobre, procurou um canto para esconder suas armas. Camuflou-as com folhas secas e galhos no alto de uma árvore. Ao descer, marcou a base do tronco, ferindo-o com uma pedra até que dele escorresse a seiva. Sabia que ao secar ela se tornaria mais escura que a madeira da árvore e que só ele saberia o significado daquela marca no tronco. Aprendera isso com seu pai, assim como todo o resto, caso algum dia ficasse perdido na mata e precisasse sair de onde estava para procurar alimento. Entretanto não sabia se daria certo, era a primeira vez que realizava tal gesto, por isso ficou olhando a árvore por um bom tempo de modo que a pudesse localizar caso não funcionasse a estratégia da marca no tronco.

Assim que achou que reconheceria a árvore caso a visse de qualquer outro ângulo, partiu. Caminhou horas a fio e nada encontrou, nem mesmo consolo na beleza que ia contemplando durante a busca. Avistou alguns animais, um esquilo que roubava ovos de um ninho de pássaros, uma raposa passando com a presa em sua boca e só. A noite caiu rapidamente e assim ele acampou outra vez. No outro dia a mesma sorte lhe sorriu: viu os mesmos animais nas mesmas atividades. Concluiu que não conhecia nenhum animal que tivesse o coração puro. Todos matavam, saqueavam, brigavam e matavam-se uns aos outros, assim como os homens. E, enquanto se perdia em suas reflexões, o sol desmaiava lentamente detrás das árvores, e, por entre elas, caminhava em direção ao rei uma conhecida figura trajada de negro.

- Então?

- Nada.

A bruxa o olhou bem dentro dos olhos como se vasculhasse sua alma. Em seguida abriu os braços e atrás dela se formou um longo caminho sem obstáculos algum.

- Vai, meu rei.

Mesmo não entendendo nada sobre o que havia ocorrido, o rei percebeu que estava livre, e isso bastou o suficiente para que o bom rei não ousasse questionar a bruxa.

 ***
 
Muitos anos se passaram desde que o rei retornou da floresta. No início ainda via as coisas da mesma maneira que antes: com olhos de um monarca severo e impiedoso, e por isso, durante um bom tempo, evitou de sair de seu castelo. Entretanto, conforme o tempo discorria, uma estranha dor em seu peito se consolidava. Foram chamados cirurgiões-barbeiros, curandeiros, magos, supostos magos e até entendidos no assunto de todos os lugares para analisarem o rei e chegarem ao mesmo veredito de que não sabiam qual a razão daquela estranha dor no centro de seu peito, visto que externamente o rei apresentava uma saúde inabalável.

Cansado de cercar-se de pedras e pessoas cada vez mais interessadas na sua não saúde, o rei optou por alterar os seus hábitos. A princípio pequenas caminhadas além das muralhas do castelo, com suaves incursões pela floresta. Depois, passou a observar a vida dos camponeses  que moravam além dos muros e os animais que viviam dentro da floresta, muitos dos quais ele caçava outrora... Após um mês, cumprindo o mesmo ritual pela manhã, a primeira ordem do dia foi suspender as caças que não tivessem o propósito de servir de alimento para as famílias mais precárias. Houve indignação por parte dos conselheiros, mas o rei pouco se importou. Ao contemplar o povo que o saudava e lhe sorria assim que souberam da nova ordem, tão contente consigo estava, que nem percebera que a dor em seu peito parecia ter diminuído.

No decorrer dos anos que se passaram a cada mês que se seguia o rei propunha uma nova mudança para seus súditos. Após a primeira ordem que tomara, decidira abrir os cofres do castelo e com os impostos recebidos e acumulados melhorar a vida das pessoas que moravam nos arredores do castelo. Enquanto o rei vislumbrava em pensamentos colheitas mais férteis e comércio mais próspero, seus conselheiros, coxixando pelos cantos dos grandes salões do castelo, diziam que o rei enlouquecera de vez e que tudo começara após aquela malfadada caçada na floresta, na qual o rei se perdera e fora encontrado desmaiado perto de uma clareira, estranhamente vestido e sem suas armas... E, muito embora, o rei soubesse do que se passava às suas costas, nunca disse nada sobre o ocorrido na floresta, pois se o fizesse, tinha certeza de que pensariam que ele realmente havia enlouquecido.

Um de seus conselheiros, mais preocupado com a questão de quem herdaria o trono assim que o rei falecesse, propôs-lhe, sutilmente, que arranjasse uma rainha. O rei respondeu para que não se preocupasse, pois, caso não deixasse nenhum herdeiro, havia concebido uma maneira de colocar um sucessor, mesmo que não tivesse sangue real. O conselheiro ficou estarrecido com o que acabara de ouvir, mas assim que a idéia de que ele poderia ser um provável candidato, fez com que apoiasse o rei em todos os seus atos, por mais estranho que ainda os achasse.

Certa noite, enquanto dormia, o rei sonhou que estava dormindo e dentro do sonho que sonhava ele acordou e percebeu que seus sonhos estavam molhados. Zeloso pelos seus sonhos, que gotejavam, lentamente, gota após gota, correu e os colocou para secar. Feito isso, foi caçar; próximo a uma lagoa, não muito longe de seu castelo, mas infinitamente distante dele, pois na realidade não existia lagoas próximas ao castelo, o rei encontrou um bando de aves exóticas, em verdade eram seis, lembraria-se no dia seguinte. 

Eram aves que nunca havia visto em canto algum, grandes, com pescoços longos e curvados como um gancho invertido. Aves belas, de uma plumagem ou pena - o rei não sabia - negra e brilhante à altura da cabeça, descendo pelo pescoço e indo terminar onde começava o restante do corpo, cuja a cor era de um branco imaculado que refletia beleza quando exposta a luz. E como nunca havia visto nada igual não saberia descrever também a gostosa sensação de paz que banhara o seu coração de nem o inefável sentimento de conforto ao ver aquelas aves deslizando sobre o espelho d'água da lagoa...

Como se estivesse ali desde sempre, um dos homens de seu séquito estendeu-lhe a besta, armada e pronta para abater uma das aves. O rei a pegou, mirou, mas  exitou antes de apertar o dispositivo que acionaria a arma. Olhou ao seu redor e não viu nenhum componente de seu séquito, como naquela mesma noite em que se perdera e encontrara aquela estranha mulher. Voltou-se novamente para as aves e mirou. E quando estava para acionar o gatilho, olhou nos olhos escuros de uma das aves e de pronto percebeu que ela lhe devolvia um olhar sereno e pedinte... Então o rei caiu de joelhos e chorou. Quando ergueu a cabeça, o rei contemplou, com certa agonia,  seus companheiros de caça rindo e apontando para ele como se ele fosse uma figura indigna de respeito para os outros.

E, em meio aos risos e dedos crispados, uma densa névoa escura se formou e dissipou aqueles arremedos de pessoas que eram como se nada fossem. Restara apenas a floresta, o rei e as aves que pareciam, agora, estarem se aproximando do rei, que ainda estava caído de joelhos quase sobre a arma, que por alguma razão ele nunca entendera o motivo dela não ter se dissipado junto com a névoa. Seguindo uma formação estranha, contudo bela, as aves continuavam a se aproximar do rei, ficando mais próximas deles mesmas a medida que mais próximas estava do rei. Este as olhava, cheio de comoção e de amor, e em meio a escuridão que se formou após a névoa, seus olhos brilhavam e iluminavam tudo que estava em sua direção. Isso fez com que percebesse que nelas havia uma pequena mancha vermelha na fronte. A aves pararam diante do rei e começaram a se unir de tal mudo que se fundissem umas nas outras e tomassem o aspecto de uma mulher coberta por um manto negro que se formara do negro dos pescoços das aves a cobrir-lhe o corpo que também se transformara e se ocultara sob o manto.

- Meu rei - disse uma voz rouca e melancólica - a segunda noite caiu. Vim buscar o que é meu e vejo que não o encontro.

- De tudo que vi, pensei que dentre aquelas aves pelo menos uma delas possuía um coração puro, mas não sei o por qual motivo não as consegui pegar. Falhei, minha senhora, falhei... Faça o que deve ser feito.

A bruxa retirou o capuz do manto que lhe cobria a face. O rei mudo e pasmo, mais em sonho que na vida real, contemplou uma bela jovem dotada de uma vasta cabeleira ruiva, de pele alva e macia salpicada com pequenas sardas. Boquiaberto, o rei contemplava aquela beleza demasiada para um coração velho e cansado como o dele. Olhou-a nos olhos e reconheceu aquele mesmo olhar manso e pedinte que havia visto em uma das aves.

Ela o segurou pelo queixo e suavemente beijou-lhe os lábios Um beijo quente e ardente e suavemente úmido que fez com que o rei estremecesse. Um vento forte agitou as árvores, os galhos das árvores, as folhas das árvores, os ninhos que neles estavam e quem sabe o que mais poderia haver. Então ela s afastou.

- Por quê? - Quis saber o rei.

- Seu coração: você o encontrou, quando escolheu morrer a matar indiscriminadamente ou a satisfazer uma ordem sem fundamento. Se tivesse optado por capturar um dos cisnes, ficaria preso aqui até que viesse a padecer. Saiba que qualquer animal tem o coração puro, pois não agem, ainda que matem, ainda que furtem, por maldade, mas sim pela necessidade primária que a razão lhes concebe: sobrevivência. Entende?

- Tentarei.

- Espero que sim, pois você abriu mão de sua vida em prol deles. Preciso ir embora antes que você acorde e eu fique presa em sua mente até que sonhe comigo novamente.

- Não vá - disse o rei enquanto se levantava. - Não queria que você fosse...

- Preciso ir embora. Mas nos veremos novamente.

- Promete?

- Pessoas como eu não prometem nem juram. Apenas dizem e cumprem com suas palavras... Adeus.

- Adeus...

O rei faleceu uma semana após o sonho. Contam que na manhã em que foram acordá-lo para que pudesse dar o seu habitual passeio matutino, seu corpo estava frio como a neve que não se derrete das montanhas mais altas. Mas o que mais espantou os que viram e os que depois ficaram sabendo, foi o sorriso que havia em seu rosto naquela manhã.

Dias seguintes ao enterro um jovem casal de camponeses, que se encontrava às ocultas de seus pais, avistou um outro casal de jovens correndo nus pela floresta. E como ninguém poderia saber que eles estavam se encontrando, nunca mencionaram que tinham visto um jovem de pele bronzeada e longos cabelos negros ao lado de uma jovem branca e ruiva.



Primavera de 1997 - Outono de 2013

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Sem Luz de Luar




Findara-se a Tarde
Trajando carmim,
Despindo-se em púrpura
Nas sombras de um véu
Sem luz de luar.

Assim, negra a Noite,
Ergueu-se serena
Vestida de estrelas,
Bailando suave
Virando Manhã.

E em seu desvario
Desprendeu-se cálida
Do cinza marinho
Abrindo-se nú,
Plenamente, Dia.


15-17/04/2013

domingo, 7 de abril de 2013

Não tem Jeito...



Não tem jeito:
O que não é para ser,
Não o é e pronto!

- Maldito seja o coração!
Que não para! Que não morre!
Que simplesmente não explode!

- Facilita! (Desgraçado...)
Não vês que já estou morto?!
(Só não fui enterrado...)

sábado, 6 de abril de 2013

Desencontro



Um dia deparei-me com a Felicidade
Ou teria sido o inverso? Não me lembro...
Mostrou-se-me como um punhado de grãos de areia.
Escapou-me por entre os dedos antes que me desse por ela...
Deixou-se levar pelo vento e perdeu-se no espaço.
Durou tão pouco que nem sei se foi real...

Fosse o que fosse
O meu desejo seria outro
E também não poderia ser meu...


10/08/2012

quinta-feira, 4 de abril de 2013