sábado, 10 de agosto de 2013

O Ministério da Saúde Adverte?



"Quando a morte conta uma história, 
você tem que parar pra ouvi-la."
  - Markus Zusak


Já passava da meia noite quando desci do ônibus e entrei em uma viela que liga a avenida principal do bairro onde moro à rua da minha casa.

Saquei um cigarro do maço e coloquei-o na boca; peguei o isqueiro com a mão direita, já que a esquerda estava ocupada com o celular e, quando ia acender o cigarro, notei que um homem vinha em minha direção...

O fato de eu ser pequeno faz com que veja qualquer pessoa com mais de um metro e oitenta de altura como se fosse um gigante, mas aquele cara era bem maior que isso. Não bastasse o seu tamanho e o fato da viela não ter iluminação alguma, o sujeito era tão negro. Não que eu seja preconceituoso, mas não poder distinguir uma pessoa na calada da noite não é algo que me deixa confiante.

Quando se aproximou um pouco mais, consegui identificar o sujeito pelo uniforme: era um policial. E por um momento não soube se deveria ficar tranquilo ou preocupado: a arma que, normalmente, deveria estar no coldre, estava à mão!

 Como havia um carro estacionado na viela, calculei que, se eu fosse - um pouquinho só - para a direita, haveria espaço suficiente para que nós dois passássemos lado a lado sem que um esbarrasse no outro. E assim o fiz: enquanto andava, direcionei-me, suavemente, uns vinte centímetros ou pouco mais para a direita... Subitamente, ele se moveu cerca de um metro ou mais em minha direção.

À medida que se aproximava, percebi que seus olhos estavam injetados: aquela parte branca dos olhos, a esclera, que, normalmente, deveria ser branca, estavam vermelhas... Vermelhas demais.

- 'Ta vindo do trabalho? - E ao mesmo tempo em que fez a pergunta com aquela voz cavernosa, sua mão esquerda procurava algum objeto suspeito à altura da minha cintura. Por instinto ergui as mãos próximas à cabeça. Celular na esquerda, isqueiro na direita e cigarro à boca.

- Da faculdade.

Apontando a cabeça em direção a minha mochila, ainda me revistando com a mão esquerda disparou:

- O que tem aí? 

Movido por uma frieza absurda que dominou minha mente naquele instante, respondi num folego só:

 - Um caderno um guarda-chuva uma revista uma camisa de flanela uma jaqueta esportiva dois livros e um estojo.

Por alguma razão que desconheço, se ele me perguntasse o que havia dentro do estojo ou quantos zíperes tinha a mochila eu também saberia responder.

- Tem passagem?

- Não. Nenhuma.

- Usa drogas?

Esta pergunta me deu uma certa vontade de rir, mas eu resisti bravamente. Sinceramente, observem a situação: é madrugada, você encontra com um policial em atividade para lá de suspeita, olhos estranhamente vermelhos, com a arma na mão e você responde o que mediante uma pergunta desta? Que fuma um baseado, que cheira um pó, que se injeta... Só se estiver muito chapado!

- Não. Nada.

Um pequeno silêncio de cinco segundos pesou entre nós. E eu ainda estava com as mãos à altura da cabeça: celular em uma, isqueiro na outra e cigarro à boca.

- Mora por aqui?

- Naquela rua. - Disse, apontando com a cabeça, o nome da rua em frente à viela e o número da minha casa.

- Vai pra casa, filho. 

- Obrigado. Boa noite e bom trabalho.

Ainda possuído por aquela frieza absurda, caminhei os quatro metros mais distantes da minha vida, e em nenhum momento, nem sequer um lampejo de pensamento, passou pela minha cabeça a necessidade de olhar para trás.

Os quatrocentos metros seguintes, que separam a viela da minha residência, passaram-se em um piscar de olhos. E somente quando fui pegar a chave para abrir o portão, percebi que o celular continuava na esquerda, o isqueiro na direita e o cigarro apagado à boca. 

Sentei no pequeno degrau que separa o portão da calçada, e pensei: um policial andando sem parceiro, à meia noite, sem viatura, em uma vielinha sem iluminação, na periferia de São Paulo, onde já ocorreram diversos assassinatos e execuções não resolvidas, com a arma em punho? 

"Quem eu realmente vi naquele momento? Um policial com conjuntivite? Um lobo solitário ou um cachorro louco? Tem diferença? Teria sido a própria morte? Um encontro destes, o Ministério da Saúde Adverte?  

Inevitavelmente veio-me à mente: "Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando." E querem saber? Pessoa estava certo... Dane-se o politicamente correto: acendi o cigarro e fumei... E aquele foi o cigarro mais saboroso que fumei até hoje!  




São Paulo, 10/08/2013