Deitado sobre a grama, sob a sombra de uma árvore frondosa, em um parque público, ele estava quase cochilando de tédio ao folear as páginas de uma revista semanal, quando a viu caminhando em sua direção: pequenos passos firmes, decididos e levemente acelerados conduziam aquela pequena criaturinha.
Um vento lateral alinhara os cabelos castanhos claros dela para o lado direito da face formando uma linda assimetria; normalmente isso a teria incomodado ao ponto de retirar o elástico de cabelo que carregava em um dos pulsos e prendê-los em seguida. Foi quando ele reparou que suas mãozinhas estavam unidas em forma de uma conchinha e no seu rosto o mais belo sorriso que uma criança de quatro anos poderia esboçar.
Ao se aproximar, ela desacelerou os passos tranquilamente e adotou uma postura calma e serena... Igualzinho a mãe, pensou ele e sorriu.
- Aconteceu alguma coisa?
- Shh... – sibilou ela entre os pequenos lábios.
Como se possuísse uma espécie de pequeno e raro tesouro ela se sentou ao lado dele.
- O que tem aí?
- Fala baixo pai!
- Tá - disse ele sussurrando. Mas... o que tem aí?
Ela levou as mãos fechadas em direção ao rosto dele e, suavemente, as abriu um pouco. Ele espiou dentro, mas não conseguiu ver o que era.
- Não consegui ver o que era.
- É uma joaninha!
- É?
- É!
- E por que estamos sussurrando?
- O que?!
- Su - ssu - rran – do: falando baixinho.
- Ah... é para não assustar ela, ora!
Uma brisa suave lhe trouxe um aroma familiar e ele sorriu.
- Não precisamos sussurrar, ela não entende o que falamos.
- Você quem pensa!
Ele riu. A cada dia que se passava, a cada conversa, em cada gesto, ela refletia a beleza e a personalidade da mãe em tudo.
- E o que você pretende fazer com ela?
- Levar ela para casa.
Ele desfez o sorriso e olhou-a intensamente nos olhos.
- Não podemos.
- Por que não?
- Porque, em algum lugar, ela deve ter uma família que está esperando ela voltar.
- Mas... e se não tiver?
- Ana... esse bichinho...
- Joaninha!
- Tá: essa joaninha que você tem entre as mãos não é o tipo de... bichinho que você pode ter em casa. Olhe em volta filha, nossa casa não se parece com um parque que é onde as joaninhas vivem. Além do mais você sabia que elas voam?
- Sabia. Foi ela que veio até eu.
- Até mim. Repete.
- Foi ela que veio até mim.
- Isso. Então, não é justo prender um ser vivo que não fez mal algum a alguém e que foi feito para voar.
- Mas a vovó tem aquele pássaro amarelo...
- ...que fica o dia todo preso e nem canta mais de tanta tristeza que sente!
- Os pássaros... quando estão tristes não cantam!?
- Não só os pássaros...
- Então por que as pessoas prendem eles?
- Egoísmo.
- O que é isso?
- É um sentimento ruim. Surge quando você - e ele apontou o dedo indicador para ela - toma uma decisão sem levar em consideração as consequências que afetarão a outra parte - e moveu o dedo que ainda estava apontado para ela em direção as suas mãozinhas unidas.
- Eu sou ego... ego...
- E - go - ís - ta.
- Egoísta. Eu sou egoísta?
- Não, você não é egoísta, mas está agindo como se fosse. O que sua mãe disse quando você mostrou a joaninha para ela?
Ela levantou a cabeça, olhou em direção a árvore sob a qual estavam, e tornou a olhá-lo novamente.
- Nada.
- Sei...
Ana ficou olhando para as mãos durante um tempo, e através das pequenas expressões que sua face demonstrava, ele percebeu que o pequenino cérebro por trás daquela radiante beleza estava processando as informações para decidir o que faria logo em seguida.
- Eu não me lembro onde eu estava quando ela veio até mim... Queria deixar ela no mesmo lugar.
- Não tem problema, meu anjo, é só soltar. Ela dá um jeito de chegar onde tem que ir.
Enquanto ela abria as mãos, ele se ajeitou e escorou as costas no tronco da árvore. A joaninha demorou um tempo até que se desse conta de que não estava mais presa e voou. Ana sussurrou um “tchau”, sentou-se ao lado do pai e encostou a cabeça em seu peito.
- É verdade...
- O que é verdade, Ana?
- Não são só os pássaros...
Ele ficou digerindo suas próprias palavras que retornaram através da pequena Ana.
- Por que você não vai brincar um pouco filha? Daqui a pouco vamos voltar para casa e você não aproveitou nada deste dia.
A princípio ela deu de ombros, mas tão rápido quanto tinha se decidido por ficar, levantou-se e saiu correndo em direção ao playground.
Ele esboçou um sorriso e disse:
- Você me apronta cada uma, hein mocinha?
Bel se deslocou da parte de trás do tronco da árvore e se sentou ao lado dele.
- Isso foi para mim ou para ela?
- Essa é para você, mocinha. Por que não explicou a ela que não poderia levar a joaninha para casa?
- Por que você explicaria melhor.
- Vai chegar um dia em que será você quem terá que explicar algumas coisas para ela.
- Eu sei... Mas até lá nós duas temos você.
- Sei...
- Eu sei que você sabe... gosto quando já sabe. E por falar nisso, quando foi que você descobriu que eu estava aqui?
- Percebi pelo seu perfume, o vento mudou de direção e entregou sua proximidade; e depois quando ela olhou diretamente para você e você fez um sinal para que ela ficasse em silêncio.
- Como você viu, se estava de costas!?
- Não vi. Ana teria dito que você pediu para que ela viesse me mostrar e perguntar se podia ou não ficar com a joaninha, mas quando você a sinalizou ela ficou confusa e tudo que saiu foi “nada”.
Bel se aninhou ao peito dele, assim como Ana havia feito minutos antes. Agora, próximo ao rosto dele, o inconfundível perfume de Bel era total e predominante. Ela se virou e apoiando a cabeça em seu colo sussurrou:
- Quer saber de uma coisa?
- Quero - respondeu ele no mesmo tom.
- Estou com uma vontade danada de cantar!
São Paulo, 04 de julho de 2014