domingo, 31 de julho de 2011

1ª Parte

  I
Pessoas passam apressadas pelas alas de acesso do terminal. Tenho a nítida sensação de que se não acompanhar o fluxo serei arremessado, por um passante, contra alguém que, por sua vez, me arremessará contra outra pessoa qualquer, tornando-me neste momento e nesta situação uma bola de pimball absolutamente desgovernada e sem um jogador para direcioná-la.
Acelero o passo. Procuro um lugar em que possa esperar tranquilamente, o que é praticamente impossível. Estou no terminal Rodoviário Tietê. Por aqui circulam dezenas de milhares de pessoas diariamente. O suficiente para ser a população de uma pequena cidade do interior. Aqui a vida tem um ritmo próprio: as pessoas andam velozmente por entre outras pessoas, indo ou vindo, empurrando ou puxando coisas, carregando-as nos braços, sobre a cabeça; enfim, como podem, seguem esbarrando em tudo que estiver em seus caminhos.
E se você se descuidar ainda corre o risco de ter a carteira batida. Não porque a segurança é precária, desleixada ou ineficiente, apenas porque o único objetivo de quem infringe a lei é se dar melhor do que euem a aplica, sem ser pego. O lucro, embora pareça ser o objetivo principal, é na verdade secundário.
Próximo ao portão de embarque há uns bancos, que nem de perto são suficientes para o volume de pessoas que esperam pelo horário do embarque. Verifico que estou uma hora e meia adiantado. Encosto a mochila em um canto próximo ao portão de embarque e sento-me no chão para esperar. À esquerda próximo a uma loja de souvenires, uma senhora de idade já avançada reclama para uma moça sobre não ter lugar para se sentar. A jovem, de no máximo uns 20 anos, esboça uma careta de quem não suporta mais ouvir a mesma ladainha. Seus braços cruzados e o corpo inclinado em direção oposta à idosa confirmam minhas suspeitas.
Imediatamente a garota ganha a minha simpatia. Quando era mais jovem, bem mais jovem do que sou agora, passava parte do tempo livre pensando em como eu seria quando e se envelhecesse. Sei que esse não é o tipo de pensamento que vem à mente de um adolescente ou de uma criança, mas era pertinente à minha.
Havia um medo velado, não nego, de que eu poderia me tornar um desses velhos rabugentos, chatos e solitários que passa metade do dia procurando algo para fazer e a outra metade reclamando daquilo que fez ou não fez. Já havia visto vários assim e o fato de ter uns dois ou três na família agravava a situação.
Tia Alegria, por exemplo, era a ironia encarnada. Eu não gostava de ir visitá-la, mas meus pais não me deixavam sozinho em casa nem que isso fosse uma opção. Mamãe dizia que se me deixasse sozinho em casa não ficaria surpresa se ao retornar constatasse que tinha passado um furacão pela casa. Por isso ela nunca me deixou sozinho em casa e provavelmente nunca viu um furacão em toda sua vida...
Apesar do chocolate quente com canela em paus e do bolo de cenoura com cobertura de chocolate que tia Alegria oferecia, eu não me sentia a vontade nem em sua casa nem em sua companhia. Tudo na casa, inclusive a dona, tinha aquele cheiro característico de mofo e naftalina.
Na época eu era crianças e, como qualquer um sabe, não existe politicamente correto nesta fase da vida. Até porque no inicio dos anos 70 este termo era tão desconhecido quanto aplicado. Mas mesmo sem saber desta característica inerente à minha idade, eu nunca contei nada disso para os meus pais, nem mesmo para o meu pai que, como era fácil de observar, também sentia aquele cheiro de abandono. Infelizmente, agora já crescido, percebo que ser criança também é ser transparente e, enquanto meus pais fingiam não sentir, eu meio que sentia uma necessidade superior a mim mesmo, algo imediato que muitas vezes era acompanhado de total falta de dissimulação: eu coçava o nariz, fazia cara feia quando ela vinha com aquele abraço rançoso, afastava a cabeça o máximo possível para evitar os seus beijos de boca de múmia... mas nunca adiantava.
Como não bastasse a minha recusa natural, não importava quanto tempo durasse a visita, tia Alegria sempre fazia questão de nos passar o relatório completo de suas últimas visitas ao médico: reumatismo, artrose, artrite, exames, coluna, juntas, mais exames, coleta de sangue, urina, fezes e tudo mais... E isso era dito independente de estarmos sentados no sofá ou à mesa, comendo ou bebendo qualquer coisa.
Anos depois ouvi a música O Pulso dos Titãs e não tive como não me lembrar dela. Era tanta coisa reunida em um único ser humano que eu imaginava que o hospital inteiro ficava de prontidão quando ela ia se consultar. Por isso nunca me ocorreu perder a cabeça se ela capotasse durante as nossas visitas. De certa forma era como se uma parte minha torcesse para que isso acontecesse, uma pela curiosidade outra porque assim as visitas terminariam.
No decorrer dos tempos conheci muitas pessoas como tia Alegria: embora a morte fosse eminente, a pessoa durava anos, às vezes, décadas.
Certa vez, enquanto brincava no quintal, minha mãe veio me avisar que no dia seguinte nós a visitaríamos. Distraidamente perguntei se não era mais fácil ligar para o médico ao invés de ir lá. Ganhei um puxão de orelha e fui dormir mais cedo aquele dia.

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