quinta-feira, 10 de março de 2011

A Fuga









Acordo assustado no meio da madrugada. O meu corpo está banhado em suor. Sento-me na cama, ponho as mãos no rosto e sinto a umidade da pele nas pontas dos dedos. Levanto-me completamente; não estou vestido; procuro o interruptor e não o acho... Nunca há luz quando preciso... amarga ironia!



Continuo tateando a parede em busca do interruptor. Meus pés se esbarram em alguma coisa maciça: um banco de madeira... quando eu o trouxe para o quarto? Encontro a maçaneta e abro a porta; há um interruptor do lado de fora... ligo a chave e ouço estalos de grandes refletores se acendendo simultaneamente...



É quando percebo que estou sonhando...



É quando percebo que estou consciente dentro de um sonho...



Retorno porta a dentro e meu quarto é um galpão velho e conhecido - sepultado na memória. Há tanta poeira no local que mal consigo identificar os móveis à primeira vista... Tantas são as coisas amontoadas umas sobre as outras e todas elas ali há tantos anos: uma foto em preto e branco de uma juventude colorida, pétalas de flores que nem me lembro mais que cores tinham ou a que flores pertenciam, um amigo ou outro que ficou para trás, uma carta que nunca fora aberta... No canto de todos os cantos, onde todo o esquecimento se converge... De repente, algo me chama a atenção: um lençol que um dia fora branco a cobrir algo que um dia me fora estimado.



Levanto-o e a contemplo: a cor ainda é de um vermelho vivo e pulsante, passo a mão pelo guidon... é como se tocasse um corpo feminino. Uma sensação de saudade nasce e morre em mim ao mesmo momento.



Vou até o vestiário e me decepciono ao me deparar defronte ao espelho de corpo: estou velho, gordo, careca e cheio de cicatrizes; há tantas cicatrizes por fora quanto por dentro... mas o espelho só revela as internas.



Cravo as unhas na nuca e sinto a carne ceder à pressão: um líquido quente e viscoso desce pelas minhas costas. Rasgo a pele e lentamente retiro-a do meu corpo. Talvez doesse mais se a dor não fosse uma velha amiga...



Olho tudo aquilo no chão e vejo quilos de excessos adquiridos ao longo de 13?, 15 anos? Não me lembro.



Olho-me novamente no espelho e me reencontro (novamente uma sensação de saudade nasce e...): corte militar, um brilho no olhar - de quem sabe alguma coisa que o resto da humanidade vai demorar muito para descobrir - e um sorriso de canto que eu nunca deveria ter abandonado.



Estou usando uma malha de coton negra que me cobre do pescoço aos joelhos. Olho o que sou depositado no solo: o velho repudia o novo...



Viro-me e vejo meus óculos. Lentes vermelhas especiais, eles estão ao lado da bicicleta de corrida... Ela me chama... no começo é apenas um sussurro, mas a medida que me aproximo o sussurro vira um clamor. Passo a mão pelo quadro e um êxtase violento me assalta e domina.



Ponho os óculos e o mundo, monocromático que já me habituara a ver, adquire cores vibrantes e intensas... Ela me chama mais uma vez... e eu a atendo: toco-a e a conduzo para fora do galpão.



Nuvens acobreadas se aglomeram no céu negro, gotas brancas grossas e densas se arremessam delas e dois raios verdes e luminosos cruzam-no horizontalmente em direções convergentes...



Uma estrada cinza com faixas amarelas se abre diante de nós... Monto-a e a sinto... cada movimento uma parte de nós na mesma sincronia, cada pedalada seu corpo suave adquire leveza e responde de acordo com o ritmo... Cada vez mais cadência, mais velocidade, mais rapidez o vento me encontra na face e faz carícias a chuva úmida beija meus lábios quentes cada vez mais a paisagem ao lado se perde do foco todos os músculos do corpo obedecendo a um único propósito mais cadência mais rapidez mais velocidade...




Rumo ao Indefinido.

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