domingo, 13 de março de 2011

A Soma de Todas as Coisas


"...porque uma parte da minha história,
 é nossa."
- Elaine Grava



Seus olhos azuis me encaravam com tal intensidade que eu nem sabia como lidar com a situação. A camisa apertava o pescoço, o pescoço estrangulava a voz e o calor da noite me deixava mais mole do que já estava... E ela sabia disso, era só olhá-la nos olhos para perceber. Ela me encarava e sorria sutilmente, não tinha pressa: desfrutava o momento como um felino.

- Então... - eu tentei dizer algo, mas a voz saiu engasgada como se eu tivesse engolido um pássaro ou o mesmo estivesse tentando sair de mim pela boca.

- Garganta seca?, é o calor, né? Por que não pedimos algo para beber? - ela disse entre o irônico e o sensual.

Pedimos dois chopes. Eu não tinha levado muito dinheiro e ainda julguei mal o preço das bebidas pela cara do barzinho. O que imaginava dar meia duzia de copos daria apenas três e algumas balinhas de hortelã. Pobre é uma merda. Mas algo me dizia para não se preocupar, afinal de contas era uma moça de traços finos, bem vestida, dessas fresquinhas que, quando bebem ou comem alguma coisa, parecem estar sempre degustando, saboreando aquele bocado ou gole por uns cinco minutos...


Nos conhecemos na farmácia onde eu trabalhava como caixa. Sábado a noite, mês de Março, nenhuma alma viva dentro do estabelecimento a não ser quem trabalhava lá: duas colegas e eu.

Como na maioria das vezes, estava no caixa, quase dormindo, quando ela entrou: loira, olhos azuis, tênis descolado, calça jeans desbotada e uma jaquetinha de sarja que só faltava estar escrito: "acabei de gastar a maior fortuna nela".

Como eu estava sozinho, à frente da loja, nem me dei ao trabalho de sair do caixa para lhe entregar a cestinha. Abaixei a cabeça e comecei a calcular o quanto receberia de salário, menos os descontos, menos a quebra de caixa e coisas do gênero. Devo ter pescado uma ou duas vezes, estava realmente com sono, pois aquele não era meu turno, eu estava cobrindo um funcionário que havia faltado. Levantei-me para espantar o sono e caminhar um pouco pela loja, quando, a alguns estandes a frente, me deparo com a moça.

Lembro-me de ter pensado sobre quanto tempo ela já estava andando pela loja - para lá e para cá - e ainda não tinha escolhido nada. Não tinha um perfil de quem fica enfiando as coisas na bolsa, nos bolsos da calça ou vá lá saber onde mais se pode enfiar algo que se queira roubar, mas mesmo assim entreguei-lhe a cestinha e perguntei se precisava de ajuda.

- Não! - seco, grosso e sem remorso...

Imaginei meia dúzia de palavrões, dei-lhe meu melhor sorriso e gentilmente voltei para o caixa.

Não deve ter passado nem uns três minutos, não me lembro... que tivesse passado meio minuto... cada vez que a olhava andando pela loja mais irritado com a sua presença eu ficava. Levantei-me e fui outra vez em sua direção.

- Tem certeza de que não posso ajudá-la em nada?

- Tenho! - mesmo tom da outra vez.

- Não... sabe o que é... é que você já está um bom tempo andando e se disser o que procura não perderia mais tempo!

- Batom... você entende de batom?- usando o mesmo tom das outras vezes, mas com uma pitada de ironia.

- Cores e marcas não... de tirar sim! Só um momento por favor.

Chamei uma das meninas que estava no fundo da loja, pedi para que ajudasse a desorientada e fui para o caixa.

Inevitavelmente acabei atendendo-a em seguida. Ela pediu desculpas por ser grossa, eu pedi por ser insistente e coisas assim. Ela pagou e foi embora. E teria ficado por isso mesmo se depois daquele episódio eu não a encontrasse quase todos os dias; e digo quase porque só não a via quando eu estava de folga. Todos os dias cedo ela passava e me cumprimentava com um aceno.

No mês de Abril mudaram meu horário para o turno da tarde. Então passei a vê-la sempre voltando do trabalho. Lembro-me de pensar que parecia uma dessas pessoas que não se cansam nunca da correria do dia-santo: a qualquer hora do dia sempre a sorrir com os olhos...

Certo dia entrou uma senhora na farmácia, se apresentou e me perguntou se eu conhecia uma moça bonita, olhos verdes - verdes?- loira e com um leve sotaque do interior.

- Não me lembro, não mesmo. Olhos verdes... tem certeza?

- Tenho sim, pois é... sabia que se você a convidar para tomar um sorvete ela aceita?

- Não, não sabia... Sorvete?... é mesmo? Tem certeza de que são verdes?

Ela assentiu com a cabeça e assim como veio se foi.

Não me lembrava de conhecer nenhuma loira de olhos verdes com sotaque caipira, ainda mais disposta a fazer uma proposta indireta como aquela. Eu não era feio de dar dó, mas também nunca fui bonito a ponto de alguma mulher se atirar em cima de mim... De qualquer forma fiquei esperando que alguma mulher parecida com a descrição daquela senhora adentrasse pela farmácia e me desse uma dica, mas nada. Enquanto isso todos os dias a outra moça passava e me acenava, seu sorriso e seus olhos azuis...

De repente - e esse de repente demorou duas semanas - me questionei se a tal mulher não teria errado a cor dos olhos; quanto ao sotaque não tinha como eu perceber: ela passava, olhava, sorria e acenava. Uma vez ou outra falava oi por entre os lábios, dada a distância entre o caixa e a calçada, para que eu os lesse.

Quando a vi novamente fiz um gesto para que ela me esperasse que eu queria falar com ela.

- Sabe... outro dia veio uma mulher aqui, Gertrudes, eu acho, e me disse que se eu convidasse uma moça, assim, hum... com suas características para tomar um sorvete ela aceitaria. Só que ela não me disse o nome da moça, mas disse que os olhos eram verdes e que era uma moça do interior... como não apareceu nenhuma moça assim até agora, eu... eu... eu queria saber se você aceita tomar uma cerveja ou um chope no lugar dela...

Ela me olhou meio que sem saber por onde começar:

- Geralda... o nome da mulher é Geralda. E eu não acredito que ela fez isso...

- O que?

- Confundir azul com verde... Então... também não tinha falado sorvete, mas tudo bem... aceito sim.

Ela seguiu a diante e eu voltei para o caixa. O subgerente ocupara meu lugar e estava com uma cara de quem não era mais pago para fazer aquilo. Expliquei a situação para ele, numa linguagem mais masculinizada: gostosinha, loirinha, mais ou menos 1,70 de altura, gatinha, dando mole, etc.

- Sei, sei... Ela é branca, dos olhos azuis e esta usando uma blusa verde bem clara?

- É, é, sim!, você a viu quando veio aqui?

- Sim... ela esta aí: atrás de você!

Quando me virei ela estava sorrindo, aquele sorriso  de quem acabara de ouvir tudo. Fiquei mudo... Sabe aquela hora em que você se pergunta a razão pela qual o avestruz enfia a cabeça em um buraco no chão? Bem, eu descobri o motivo e estava procurando o buraco.

- Atrapalho? 


- ...Não!

- Espero que não. O papo parecia que ia ficar interessante... Mas, quando cheguei em casa me dei conta de que marcamos de sair, mas não escolhemos dia, hora e nem local!

- Sei lá... você pode escolher e...

- Tá bom... hum... Hoje então! Que horas você sai?

- Às dez...

- Então tá... Às dez!

Ela se virou e saiu. O subgerente me cutucou.

- Menina decidida, né?

- Demais... Robson!, você vai ter que me fazer um favor: não tenho um centavo sequer, nada, nadinha mesmo... Você pode me emprestar uma grana?

- De quanto você precisa?

- Sei lá... uns trinta paus dá!

Ele abriu a carteira, mexeu e fuçou, como se procurasse algo que sabia que existia, mas não onde encontrar, e terminou por arrancar uma nota de dez!

- É tudo que eu tenho. Se não quiser...

- Não!!! É melhor que nada...

Quando saí da farmácia ela estava me esperando do outro lado da rua. Havia passado um lápis preto nos cílios - e isso aumentava, e muito a intensidade do azul de seus olhos. Na verdade nem pareciam olhos. Naquela noite, aquilo não eram olhos, eram esferas luminosas.

- Desculpe ter demorado para sair, mas tive que recontar o caixa mais de uma vez... Bem... Conheço um lugar aqui perto, acho que dá para beber alguma coisa e conversarmos sossegados.

Enquanto caminhávamos até o barzinho fomos desfiando o blá-blá-blá habitual de quem acaba de ser conhecer, Qual o seu nome? Erica, e o seu? Henrique, o que você faz? Sou bibliotecária, Que legal, onde? Em uma universidade, (Caraca, pensei), Há quanto tempo trabalha na farmácia? Uns oito ou nove meses, Gosta?, Em alguns momentos vale a pena...

Quando chegamos ao barzinho e vi o cardápio percebi o quanto valia realmente os dez paus... Bela merda!

Quando a bebida chegou à mesa eu dei um golinho no chope e voltei o copo para a mesa.

- Ah... muito bom!

Ela pegou o copo e também deu um golinho... e metade do conteúdo simplesmente desapareceu!!!!

"Tô ferrado", pensei!

- Olha Erica, vou ser bem sincero com você: julguei o livro pela capa. Não estava preparado para a ocasião, mas queria muito vir. Então não vim... er... bem... como eu posso dizer?... preparado monetariamente. E...

- Não se preocupe. O covite foi meu. Eu pago.

- Já que você insiste, eu não vou discutir; mas eu pago os três primeiros e umas balinhas de hortelã se a gente precisar...

Ela riu.

Conversamos sobre um monte de coisas e, quanto mais falávamos, encontrávamos afinidades até onde não deveríamos ter. Pagamos - entre aspas - a conta e nos encaminhamos até a praça mais próxima: houve beijos, agarros e sussurros. Algum tempo depois levei-a para casa e, antes de nos despedir, repetimos a sequência utilizada na pracinha. Despedi-me e fui dormir. Contente.

O tempo foi generoso, da curtição ao namoro não demorou nem uns dois meses. E, como sempre, nos víamos com mais frequência e liberdade aos sábados.

Namorávamos muito. Deixamos em cada rua dos bairros em que passávamos um pouco da nossa paixão desenfreada: amassos em praças ao cair da noite; leituras de poesias em bares e nas portas de nossas casas; bebíamos até rirmos sem saber a razão do riso e toda vez que fazíamos amor parecia que não nos víamos há anos e que nem nos veríamos mais: tínhamos uma fome estranha de um pelo outro...

Mas esta chama que ardia também fora responsável por inúmeras brigas. Muito mais por minha culpa... Nem eu sabia ao certo, mas por mais que gostasse dela, toda vez que sentia que o relacionamento estava navegando para o mar da tranquilidade e segurança, onde navegam as uniões estáveis, algo em mim fazia com que eu me afastasse. Às vezes esquecia de ligar, marcava encontros e não comparecia, coisas assim...

Certa vez marcamos de ir viajar para a cidade em que meus pais moravam - para apresentá-la a eles - e eu, simplesmente, esqueci que tinha de levá-la! Fui viajar sozinho um dia antes do combinado de viajarmos juntos! Até hoje não sei como isso ocorreu! Suponho que a mente tenha se desligado dela, não encontro outra resposta, pois cheguei em casa, fiz a mala, fui à rodoviária e segui estrada a fora.

No dia seguinte minha mãe me disse que tinha uma garota "puta da vida" ao telefone, que se dizia ser a minha namorada e que eu havia esquecido de trazê-la. Conversamos, embora eu só tenha ouvido, pelo telefone e ela me disse que viria de qualquer jeito onde fosse que eu estivesse...

Algumas horas depois fui buscá-la na rodoviária Ela desceu do ônibus com cara de "mato você assim que possível". Cruzou os braços. Fez bico e me olhou...

Uma coisa eu havia aprendido sobre a Erica: seus olhos sempre sabotavam suas ações: eles brilhavam. Pedi desculpas e fui o mais sincero que eu poderia ter sido, muito embora a verdade, mais nela do que em mim, doesse muito mais do que qualquer desculpa. Jurei que nunca mais faria aquilo, que eu era um idiota, que ela me perdoasse, que eu a compensaria... Disse tudo que estava ao meu alcance para que houvesse perdão para o imperdoável... E ela perdoou.

Naquela mesma noite fui ao supermercado comprar algo que não me lembro o que era, e, graças a infeliz idéia da minha mãe, fui sozinho. Por alguma razão que nunca me foi explicada as duas começaram a mexer em umas caixas antigas que eu tinha, mas que já até havia esquecido o que tinha dentro. Encontraram fotos antigas, coisas da escola primaria e algumas cartas...

Ao voltar do mercado encontrei-a chorando no quarto. Foi a primeira vez que a vi chorar. Ao lado dela, sobre a cama, havia cartas e mais cartas. Cartas que eu havia escrito para uma antiga ex-namorada; cartas que eu havia escrito durante e após o namoro, mas que nunca havia enviado; cartas que juravam amor eterno mesmo que estivesse com outra pessoa; cartas que diziam que nada no mundo me faria esquecê-la, que desejava voltar, que estava arrependido por terminar o namoro e coisas do gênero.

Verdade seja dita que na época eu nem me lembrava mais do nome completo da menina das cartas... Mas isso não mudava o fato da Erica as ter lido. Nunca até aquele dia tinha visto algo parecido, imaginava ser impossível magoar um ser humano sem ao menos tocar, dizer ou fazer algo diretamente para ele. Ela quis terminar de ler todas as cartas e eu não a impedi.

Ficamos um bom tempo ali. Não queria que houvesse segredos entre nós, não queria que houvesse mágoas, nem ressentimento entre nós. Seria capaz de responder que ela me fizesse com o máximo possível de sinceridade, mas ela não perguntou nada. Abracei-a, sequei suas lágrimas - que não paravam de escorrer - e a olhei nos olhos. Ainda havia aquele brilho, mas de alguma forma ferido, como se ela tivesse feito a soma de todas as coisas que eu fiz de errado e encontrasse nas cartas a resposta para todos os motivos.

Não conversamos muito naquela noite e no dia seguinte voltamos, cada qual, para nossas casas. Não vou dizer que aquele fato foi o epicentro das coisas ruins na nossa relação, mas foi o pivô de muitas outras que viriam. Ainda mantínhamos a paixão intensa entre nós, os encontros noturnos, toda aquela poesia fluindo de nossas bocas e corpos, os bares e tudo mais.

Mas uma coisa nova havia se instalado entre nós: a dor. Apesar das alegrias que passamos juntos, tivemos muitas brigas, lágrimas, separações e voltas... Entre indas e vindas a história durou uns sete anos.

Um dia ela foi ao meu trabalho. Trazia um livro na mão. Entregou-me e disse-me que eu o havia esquecido em sua casa. Disse, com um certo tom de pesar, que gostava muito de mim, mas que estava aprendendo a gostar mais dela mesma. Olhou para mim como se quisesse perguntar algo, mas apenas esperou em silêncio. Talvez aguardasse por algo que viria... mas não veio.

Pediu para que me cuidasse e despediu-se. Sem beijo. Sem abraço. Apenas um sorriso sem graça e um olhar triste daqueles lindos olhos azuis que naquele momento me serviram como espelhos quebrados: ainda refletindo, mas não como se espera.

Essa foi a última vez que a vi.




Fevereiro/ 2011






In Meroriam:
Elaine Grava
*22/09/1979
+31/07/2013

3 comentários:

  1. a minha opinião é que esse conto é lindíssimo, mas não mais que a história em si,
    tenho saudades.
    beijo.
    e.

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  2. Um conto romântico e triste, corrido e envolvente. Deu-me até vontade de escrever as cartas que tenho em mente. Abraço poeta e muitas inspirações procê.

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